domingo, 20 de fevereiro de 2022

 Todos os infernos são iguais!


Em  conhecida piada, São Pedro estava à porta do Céu recepcionando as almas da última safra.  A  primeira da fila apresentou-se. O Santo a  abençoa  e diz:

 —  você teve muita sorte. As regras mudaram a partir de hoje. Foi  decretada a liberdade de escolha. Nenhuma alma  mais será compulsoriamente condenada ao céu ou ao inferno. O Nosso  Senhor foi convertido ao ideário liberal pelos economistas da Escola Austríaca. Convenceu-se de que sem  a liberdade individual não existe o livre arbítrio. Doravante, todas as almas terão  o direito de conhecer as nossas instalações e  as dos concorrentes para   decidir onde gozar o  descanso eterno. Para  exercer o seu direito, sugiro, que,  depois de  conhecer o mercado, venha para uma visita.


Em seguida, o Santo  ordenou a  um anjo que a encaminhasse ao Inferno. Ao chegar lá foi recebida  pelo próprio Satanás. Este a levou  por  amplos salões,  animados por gente de corpos  e rostos lindos, que a saudaram amavelmente. Visitaram  praias de nudismo,  restaurantes  do Michelin,  hotéis seis estrelas e tudo que o bom gosto pode apreciar. Após o almoço,  foi  oferecida uma sala de repouso em companhia  de jovens. Terminada a experiência, dando-se por satisfeita, manifestou o desejo de permanecer de vez no local. Satanás, porém, recusou dizendo: 

— faz parte das  regras que as almas devem assinar um contrato irrevogável e irretratável para serem aceitas. Volte à São Pedro e retorne com o documento reconhecido pelo tabelião do Céu.



A alma procurou São Pedro, que   tentou convencê-la a conhecer o Céu. Foi em vão. Ela não via a hora de retornar. Providenciou o contrato,  despediu-se, sem ao menos olhar para trás,  e vai direto ao Inferno.  Apresentou-se ao recepcionista,  um capeta com corpo de bode,  soltando fumaça pelo nariz, fogo pelos olhos e chifres enormes. Assustou-se, mas esperou pelo melhor. Decepcionou-se com as acomodações oferecidas.  O local era  horrível: quente, barulho infernal, sujeira por toda parte e gente horrorosa.  Angustiada disse ao seu guia: 

este não é o local que escolhi! Isto é  totalmente diferente! Deve ter havido um engano! Ouviu como resposta:

 — Você deveria saber que as  recepções são como test drives. É só para seduzir. Fazem parte das campanhas publicitárias, que oferecem um mundo ideal. Não tem nada a ver com a realidade. A propaganda  é um sonho desenhado por um publicitário, a realidade é o que nos tivermos  para  entregar. São como os políticos nas campanhas eleitorais, prometem mundos e fundos; como as companhias aéreas com as viagens maravilhosas ; e como   os bancos, que dizem fazer  tudo por você. Nada além  de vãs promessas. Não existe compromisso. Nós somos iguais : anunciamos  o Paraíso e entregamos o Inferno.



A vítima inconformada pediu uma entrevista à  Satanás. Este ouviu as suas queixas com visível má vontade e lhe respondeu:

Estou muito surpreso. Você já assinou um contrato irrevogável e irretratável,  que é  como ter pago um  bilhete de voo ou aberto uma conta bancária. Não tem direito à reclamação . Mas, ainda assim, aqui  ainda é melhor do que na Terra, onde as companhias aéreas e os grandes bancos são   monopólios disfarçados , um escancarado cartel. Usam e abusam da clientela e ninguém se rebela. É uma servidão aceita  passivamente. Aqui você teve a opção do  Céu . Pior de tudo, na Terra  são os   próprios governos, com uma burocracia e nepotismo infernal ( perdoe o abuso do termo )  que limitam  a  concorrência matando a competição. Lá como cá,   a competição está restrita à propaganda enganosa,  e é isto o que nos diferencia do Céu. No resto todos os infernos são iguais!



Publicado na Coluna Contradição,

do Jornal Opção, em 20. 02. 2022.

Jorge Wilson Simeira Jacob



Nenhum comentário:

Postar um comentário