quarta-feira, 25 de maio de 2022

 Missa Negra. 


Quanto mais conheço da história da humanidade, mais tenho receio dos homens com poder. O Leviatã é um monstro. Ocorreu-me esta ideia ao ler o livro Missa Negra de John Gray . Ele foi autor de diversos livros, professor da London School of Economics e colunista do jornal britânico The Guardian. Este seu texto analisa os conflitos mais destrutivos dos últimos séculos e chega à conclusão de que as religiões políticas exploram o mito do Apocalipse, como uma crença em um evento que mudaria o mundo e levaria ao fim da história e de todos os conflitos. 


A política moderna é um capítulo na história da religião influenciada pela fé. Vivemos sob os escombros de projetos utópicos, nazismo e comunismo, que se tornaram  verdadeiras religiões. Com o fim dessas ideologias sucedem-se teorias neoconservadoras, que seria uma democracia universal ou o livre mercado global. Uma versão de crenças apocalípticas. Jesus  e seus seguidores foram os primeiros a acreditar estar vivendo no fim dos tempos, que seria o fim de todos os males. Desde então , as visões apocalípticas vêm rondando a vida ocidental.


Na Idade Média, a Europa foi sacudida com a crença de que a história estava chegando ao fim e um novo mundo surgiria. Modernos revolucionários, jacobinos, bolcheviques,  iluministas, crentes de que os crimes poderiam ficar para trás foi  um subproduto do cristianismo. Os movimentos revolucionários modernos são uma continuação da religião por outros meios.


Não só os revolucionários têm se apegado a versões seculares de crenças religiosas. O mesmo fazem os humanistas liberais. Os mitos atendem à necessidade humana de significado. Projetos utópicos como a tentativa americana de exportar a democracia para o Oriente Médio e o resto do mundo. Quando o projeto de democracia universal fracassou no Iraque, o utopismo sofreu um rude golpe, mas a política e a guerra não deixaram de ser veículos para o mito. Com a morte da Utopia, a religião apocalíptica voltou a ser um poder de pleno direito.


Política Apocalíptica


Com frequência tem se observado que, para os seus seguidores, o comunismo ofereceu muitas das funções de uma religião, segundo ex-comunistas desiludidos,  refletidos no famoso ensaio The God that failed, de Arthur Korster.

Na linguagem comum, apocalíptico denota um acontecimento catastrófico, que para os eleitos, significa a salvação. Jesus  e  seus discípulos acreditavam que o mundo estava destinado a uma iminente destruição, para que um novo mundo, perfeito, pudesse surgir. Foi o cristianismo  que introduziu a crença de que a história humana é um processo teológico. O antigo judaísmo não continha a ideia de um fim. Por trás de todas essas concepções está a crença de que a história não gira em torno de causas, mas de finalidade -  a salvação da humanidade. Os ensinamentos de Jesus apoiavam-se na crença de que a humanidade estava em seus últimos dias.

Foi São Paulo, que transformou  o movimento liderado por Jesus de uma seita judaica dissidente em uma religião universal e, portanto, permanente.


No século Xll, Joaquim de Flora — um abade circense— transformou a doutrina cristã da Trindade numa filosofia da história em que a humanidade ascendia em três estágios. A do Pai, do Filho e a do Espírito — que seria esta uma época de fraternidade universal. Esta teoria teve profundo impacto no pensamento secular. A profecia de Joaquim deu ao Estado nazista o nome de Terceiro Reich — a fase ideal.


Caberia supor que crenças místicas não tivessem grande impacto na prática, mas tiveram. Na cidade de Munster,  Alemanha, deu origem a uma experiência de comunismo, na Idade Média . No início de 1534, os anabatistas ( movimento empenhado nos ensinamentos do cristianismo primitivo ) tomaram a prefeitura e o mercado de Munster. Anunciando que o resto do planeta seria destruído antes da Páscoa, mas Munster seria salva , tornando-se a Nova Jerusalém. Em consequência: católicos e luteranos foram expulsos; todos os livros, excepto a Bíblia, foram queimados; todo dinheiro, ouro, prata, confiscados;  as portas das casas sempre abertas; a propriedade privada proibida… Esse regime puritano durou pouco.  Fracassou.  Depois do estabelecimento da nova ordem, tiveram início as execuções. Na sequência a cidade foi sitiada por forças leais à Igreja, o que levou a  população à fome. 


A política moderna tem sido movida pela crença de que a humanidade pode livrar-se dos males pela força do conhecimento. Essa crença escora as experiências de utopismo revolucionário que definiram os dois últimos séculos.


O nascimento da utopia.


A utopia sempre foi uma ideia revolucionária. O sonho de uma sociedade perfeita , um Paraíso perdido e não como o vislumbre de um futuro a ser alcançado. Platão situou a sua república ideal numa Era de Ouro anterior à história. Thomas Morus  localizou a Utopia em uma terra distante. John Humphrey Noyes criou a comunidade de Oneida , no estado de Nova York. Robert Owven comprou a cidade de Harmony para aplicar a ideia da vida em comunidade , a New Harmony. Opondo -se às inclinações naturais elas fracassaram em apenas uma geração.


A busca de uma condição de harmonia define o pensamento utópico, revelando  essencial  desligamento da realidade.O conflito é uma característica universal da vida humana. É da nossa natureza desejar coisas incompatíveis: emoções e vida tranquila, liberdade e segurança,  verdade  e uma imagem que seja lisonjeira para seu senso da própria importância. Como escreveu Hume: “ qualquer plano de governo que pressuponha  uma grande reforma nos hábitos da humanidade é com toda evidência imaginário”


A visão de Marx sobre a alternativa ao capitalismo é que é utópica. Embora tivesse entendido melhor o capitalismo que a maioria dos economistas…sua concepção do comunismo era perigosamente inviável. O planejamento central estava fadado ao fracasso: ninguém é bom o suficiente para planejar e nem o  é para governar uma economia moderna.



O comunismo soviético: uma revolução milenarista moderna.


Segundo Bertrand Russell, o bolchevismo como fenômeno social deve ser considerado uma religião, e não um movimento político comum. Lenin , invoca  em seu livro Estado e Revolução   a Comuna de Paris como modelo de governo revolucionário para a Rússia e o mundo. No futuro, não haveria mais Estado. Seriam abolidas as forças militares policiais permanentes. Os servidores públicos não teriam regalias. Afirmava que a ditadura do proletariado não necessitaria de regras de qualquer natureza, diretamente baseada na força, pois o novo regime existiria para servi-las.

Lenin não imaginou que a instauração dessa nova ordem pudesse dar-se sem lutas. De 1917 a 1923, a Checa, polícia política russa,  promoveu 200.000 execuções. Ao empregar o terror como instrumento de engenharia social , os bolcheviques deram continuidade deliberadamente à tradição Jacobina. Lenin era obcecado com dois precedentes históricos: os jacobinos derrotados por não terem guilhotinado o bastante; e depois, a Comuna de Paris, por não ter fuzilado o bastante.


Os bolcheviques  eram praticantes daquilo que Karl Popper definia como ” engenharia social utópica” ,  que tem como objetivo reconstruir a sociedade promovendo de uma vez  só a mudança de toda a estrutura. A sociedade deve ser destruída para que se crie um outro modo de vida. 


O nazismo e o Iluminismo.


Os crimes do nazismo não podem ser explicados  como manifestações do atraso.  O Iluminismo desempenhou papel indispensável  no desenvolvimento do nazismo. Os elos entre valores liberais e o Iluminismo são mais tênues do que imaginam. Voltaire via o Estado liberal como apenas um meio de alcançar o progresso humano ...para ele os valores liberais são úteis quando promovem o progresso e irrelevantes quando não o fazem.

Para Marx, o progresso era concebido em termos que se aplicavam à humanidade como um todo, enquanto a maioria dos iluministas adeptos do “ racismo científico” deixava de fora a maioria dos indivíduos da espécie. Os pensadores iluministas franceses positivistas foram os mais influentes e eram arrematados antiliberais.

Embora remonte à filosofia grega clássica , a crença na inata desigualdade entre os homens foi revivida no Iluminismo, quando começou a adquirir algumas conotações do racismo. H.G. Wells ao se perguntar qual seria o destino de “magotes de gente negra, amarela e mulata que não alcança as exigências da eficiência” , respondeu: “ Bem o mundo não é uma casa de caridade…” ideias desta ordem eram  lugar-comum entre os pensadores progressistas da época.  As políticas nazistas de extermínio não saíram de nada. Muitos compartilhavam o apreço nazista pela” ciência racial”. Os nazistas destacavam-se pelo extremismo das suas ambições.



O terror e a tradição ocidental.


O nazismo, o comunismo e o islamismo radical são produtos do Ocidente. Segundo Olivier Roy,  a verdadeira gênese da violência da Al-Qaeda tem a ver com a tradição da revolta individual. É mais pessimista em nome de um ideal fugidio do que a concepção corânica do martírio. Nessa maneira de encarar a história , o islã está em sintonia com o cristianismo e os credos seculares do Ocidente moderno. O cristianismo e o islã são fés militantes que pretendem converter toda a humanidade. 

Hoje “ o Ocidente” define-se em termos de democracia liberal e direitos humanos, como se os movimentos totalitários do passado não fizessem parte do Ocidente.Os crimes do século XX não eram inevitáveis. Os  assassinatos em massa não tem nada de especificamente Ocidental.  O que caracteriza o Ocidente moderno é a crença de que a violência pode salvar o mundo. O terrorismo totalitário do século passado fazia parte de um projeto de tomar de assalto a história.  O século XXl começou com mais uma tentativa desse projeto, assumindo a direita o lugar da esquerda. Como veículo de mudança revolucionária.


A utopia adotada nas correntes centrais do pensamento. 


A política dos governos ocidentais começou a ser determinada no fim da década de 1980 pela crença de que um único sistema político e econômico estava sendo criado em todo o mundo.É instrutivo lembrar que se tem alimentado a expectativa de que essa convergência assuma muitas formas incompatíveis. Para Max ela levaria ao comunismo; H.Spenser e Hayek,  ao livre mercado global; Comte à tecnocracia universal;  e Fukuyama ao “ capitalismo democrático global”. Nenhuma dessas etapas foi alcançada.


Ascensão e queda do Neoliberalismo


O neoliberalismo abrange várias escolas de pensamento, que, no entanto, têm em comum certas convicções fundamentais. Os neoliberais consideram a principal condição da liberdade individual o livre mercado. O alcance da ação governamental deve ser estritamente limitado. 


Um neoconservador americano em Downing Street


O neo conservadorismo não é a versão mais recente do conservadorismo.Surge do novo partido criado por Blair. O fato mais importante foi o novo consenso de Thatcher, que foi um ponto  fraco do seu partido. Durante todo tempo os conservadores funcionam como freios ao coletivismo. O partido existia para se opor não só ao socialismo,  como também à social-democracia. Ao desmantelar o consenso trabalhista , Thatcher acabou com o principal motivo da existência do Partido Conservador. A adesão  de Blair às crenças neoliberais dava continuidade à política de Thatcher.


Os contextos políticos em que Blair e Bush chegaram ao poder não poderiam ser mais diferentes. Blair não era capaz de mobilizar em seu apoio a fé religiosa popular arregimentada por Bush. Mas havia uma afinidade entre eles. A mistura da religiosidade rasa,  mas intensa, com uma fé militante no progresso humano era comum entre os dois. Blair e Bush surgiram no fim de um período de ascensão do utopismo  na política ocidental. Ambos praticavam um estilo  missionário de política, tendo como meta salvar a humanidade.



Da colônia puritana à nação redentora.


Entre as ideias abraçadas pelos fundadores da nação americana estava a teoria política de John Locke, uma teoria do governo como um contrato social destinado a proteger os direitos naturais. Os Estados Unidos foram fundados na base de uma ideologia, e neste fato residiria sua novidade.

Nem todos os Fundadores seguiam essa religião. Os federalistas pertencem a uma tradição antiutopia americana …mas nunca chegaram a tomar  o lugar da ideia de missa universal com que foi fundada a colônia americana. Como reconhecia Alexis de Tocqueville:” o excepcionalismo americano é um fenômeno religioso”.



Os possuídos.


O neo conservadorismo é uma postura das políticas públicas americanas, mas também um conjunto de ideias. A rede neoconservadora que exerceu  profunda influência em George W. Bush  é um subproduto da Guerra Fria. Muitos dos seus erros decorrem de hábitos mentais  adquiridos naquela época em condições diferentes das que hoje prevalecem.

A história não é uma ciência, mas entre a boa história e a má existe uma diferença que reflete  a maneira como são usadas as formas concretas. Há também a diferença entre formas de pensamento baseadas no conhecimento histórico e as carentes de qualquer senso histórico.  O pensador neo conservador enquadra-se nesta última categoria e muitos erros cometidos resultam dessa deliberada ignorância do passado.A ideia neoconservadora  de que é possível entender a violência terrorista  lendo os romances de Dostóievski é curiosamente irônica.Como escreveu o analista neoconservador, Michel Leeden  depois dos atentados de 11 de setembro : “ , a guerra ao terrorismo e a revolução democrática global se confundem. Não devemos alimentar dúvidas da nossa capacidade de destruir tiranias. É o que sabemos fazer melhor. É um talento natural. A destruição criativa é para nós uma segunda natureza”. Balkunin, anarquista russo, disse: “ A paixão pela destruição é uma paixão criativa”.Esta patologia é exemplificada pelos ideólogos de Bush .Os neoconservadores adotaram o recurso à força como meio de alcançar a Utopia.


Missionários armados.


Para Robespierre a ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um pensador político  seria acreditar que basta a um povo entrar, munido de armas, em terras estrangeiras para que as suas leis e constituição   forçadas sejam adotadas. 

Até certo ponto, as origens da Guerra no Iraque sempre serão obscuras. Ao intentar a democratização forçada do Oriente Médio , Bush acreditou que o resultado seriam regimes iguais aos dos Estados Unidos. Ignorou a probabilidade de que fossem democracias iliberais. , que repousa na crença  de que o bem comum fala por si mesmo. A crença de que o terrorismo pode ser erradicado também é ilusória. 


Iraque: uma experiência utópica no século XXl.


O objetivo da invasão era garantir o abastecimento energético americano; ao mesmo tempo transformar o Iraque num modelo de democracia liberal para o resto da região. O Iraque sempre foi um Estado heterogêneo, com  profundas divisões internas. Saddam conseguia manter o Iraque coeso. A sua queda emancipou os diversos grupos, deixando o Estado iraquiano sem legitimidade. O sistema imaginado manifestava uma confiança em constituições escritas que não se coadunavam com a história dos Estados Unidos, que só alcançaram a unidade nacional por meio da Guerra Civil.


Liberalismo Missionário, imperialismo liberal.


O humanitário, como missionário, segundo Santayana,  é frequentemente um inimigo do povo que pretende amparar, pois não têm suficiente imaginação para solidarizar-se com as suas reais necessidades nem bastante humildade para respeitá-las.Arrogância, fanatismo, intrusão, e imperialismo podem então, fantasiar-se de filantropia

Os liberais insistem em que a legitimidade de um governo depende do respeito que manifesta pelos direitos dos cidadãos. Quando não dá provas concretas neste sentido , ele pode ser combatido e derrubado.Para muitos liberais a “ Guerra ao terrorismo” veio tomar o lugar da Guerra Fria. Mas as diferenças são consideráveis.


Por que a “  guerra ao terrorismo “ não poderá ser vencida?


Faz parte do discurso ocidental ligar o terrorismo à cultura árabe e ao culto islâmico do martírio. Todavia, o Islã é uma religião, não  uma cultura. A maioria dos que vivem no “ mundo islâmico” não é de árabes.O terrorismo na Indonésia não pode ser explicado pela atribuição de determinadas atitudes dos árabes..Muitas manifestações do terrorismo são comparáveis a outras formas de guerra. Falar de choque de civilizações não tem sentido. Foram os Tigres do Tamil, organização marxista-leninista no Sri Lanka, que inauguraram a técnica do homem-bomba. O primeiro atentado suicida em Israel foi cometido em 1972 por um integrante japonês da Facção do Exército Vermelho.

O perigo do terrorismo islâmico é real,  mas declarar guerra ao mundo não é a melhor maneira de enfrentá-lo.


Pós-Apocalipse


A fé na Utopia, que levou à morte de tantos nos séculos que se seguiram à Revolução Francesa, está morta. O ciclo em que a política  mundial era dominada por formas seculares do mito apocalíptico chegou ao fim. Numa inversão histórica, a religião dos velhos tempos ressurgiu no cerne do conflito global.

As ideologias políticas dos últimos duzentos anos  foram veículos para um mito da salvação na história que vem a ser o mais ambíguo legado do cristianismo à humanidade.


Depois do Secularismo.


O mundo moderno começou com guerras de religião. Na guerra dos Trinta Anos, entre católicos e protestantes, morreu um terço da população.

Hobbes escreveu que num  estado natural, em que não há governo, não há “ vida cômoda” . Sem o poder do governo, os seres humanos são compelidos a travar uma”  guerra de todos contra todos”. Ainda hoje tem profunda ressonância na compreensão dos riscos da anarquia. Os pensadores liberais ainda consideram o poder incontrastado do Estado como a maior ameaça à liberdade humana. 


(Nota revisor do texto. 

No  capítulo, que se segue, o autor, no meu  modesto entendimento, falha ao  não distinguir o liberalismo, que é uma filosofia de vida baseada no respeito à liberdade individual das  atuais práticas de políticas intervencionistas ocidentais — incompatíveis com o ideário liberal. Não foi em nome do liberalismo que os  Estados Unidos invadiu o Iraque, mas por interesses materiais. )


O liberalismo costuma ser considerado uma doutrina cética, o que não faz justiça ao fervor missionário com que  tem sido promovido. A ferocidade com que as sociedades liberais tratam os seu inimigos…

As sociedades liberais merecem ser defendidas, pois encarnam um tipo de vida civilizada no qual convicções opostas podem coexistir em paz. 

O liberalismo tem se mostrado tão utópico quanto outras filosofias na postulação de uma forma de harmonia final como meta atingível. Os realistas reconhecem que os Estados estão fadados a situar aqueles que consideram os seus interesses vitais  acima de considerações mais universais ( como a invasão do Iraque ).


O fim, de novo. 


A narrativa é uma necessidade humana. Nos últimos dois séculos, a história dominante tem sido o progresso humano. Os riscos dessa necessidade de uma narrativa humana globalmente são evidentes. Sentir-se alvo de uma conspiração global , como faziam os nazistas, pode não parecer um estado de espírito positivo, mas elimina o problema de falta de significado.

Nas filosofias iluministas que modelaram os dois últimos séculos , a religião era um aspecto secundário… fadado a desaparecer …quando as causas fossem sanadas.Erradicada a pobreza e universalizada a educação , sendo superada as desigualdades sociais …a religião terá a mesma importância de um hobby. Além dos aspectos sócio-políticos, as religiões expressam  necessidade humanas  que nenhuma mudança social  haverá de eliminar: por exemplo , a necessidade de aceitar o que não tem remédio e conferir significado aos acasos da vida. Assim como não podem elidir desejos  sexuais, lúdicos ou violentos , os seres humanos nunca deixarão de ser religiosos. 

As religiões seculares dos últimos dois séculos , imaginando que o ciclo da anarquia e da tirania podia ser encerrado, conseguiram apenas torná-lo mais violento. A era moderna não tem sido uma época de menos  superstição do que o período medieval, e sob certos aspectos mais ainda. Guerras tão brutais quanto  das primícias da  modernidade  estão sendo travadas contra um pano de fundo de crescente conhecimento e poder. Interagindo com a luta pelos recursos naturais,  a violência da fé parece fadada a determinar o rumo do século que começa.


Conclusão 


A política moderna é um capítulo na história das religiões. Os grandes movimentos revolucionários  que tanto influenciaram a história dos últimos séculos foram episódios da história da fé: momentos do longo processo de dissolução do cristianismo e ascensão da moderna religião política. O mundo em que vivemos está coberto de escombros de projetos utópicos, os quais embora estruturados em projetos seculares que negavam a verdade da religião, constituem de fato veículos para os mitos religiosos. 



Jorge Wilson Simeira Jacob

Publicado no Jornal Opçāo, 

Coluna Contradicao, em 29.05.22



terça-feira, 24 de maio de 2022

Uma peça de museu!


O cachimbo virou uma peça de museu. Caiu de moda. Consequentemente, o adágio de que  o uso do cachimbo faz a boca torta caiu no esquecimento. Os usuários sempre tiveram consciência da causa e do efeito do uso do cachimbo. O protecionismo, como teoria econômica, também saiu de moda,  por ter, na prática, mostrado os seus inconvenientes. Não fazia  as bocas tortas, mas distorcia as relações econômicas. Mas deixou, como os vírus,  outras cepas   nas cabeças de muita gente. Ninguém nega que  uma   dose de protecionismo é aceitável na infância do ser humano, enquanto  não  tem condições de discernimento ou autodefesa. Mas em doses adequadas a não gerar raquitismo.


É diferente das empresas que administradas por gente amadurecida têm   plena condição de como defender-se. O protecionismo  enfraquece as empresas.  Um, pela falta do treino à competição e outro,  por ser impossível um produto não depender de insumos  externos. Não há atividade que atinja o apogeu da eficiência se fechada em si mesma. A crença Cepalina, do chileno  Prebisch, de ser a industrialização o caminho do desenvolvimento e de que a periferia deveria proteger as  indústrias  nascentes, até atingir uma maturidade, foi um fracasso. Após décadas de proteção o  Brasil está  desindustrializando-se. Não tem acesso aos importantes mercados internacionais. Não sobrevive sem as muletas do governo. Enquanto a nossa agricultura, menosprezada pelos governos,  transformou-se no sustentáculo do nosso desenvolvimento.




O  Chile, justamente a  sede da Cepal , foi o primeiro dos  países subdesenvolvidos a contrariar as teses cepalinas. Pinochet, liberou o comércio internacional do país, cuja consequência foi premiar os consumidores com produtos nas vitrines  com  a mesma variedade e preços das lojas europeias. A indústria sofreu o impacto da internacionalização da economia, mas como um todo reagiu e hoje destaca-se no comércio mundial. A agro-indústria chilena é referência pela qualidade dos seus vinhos, salmões criados em fazendas e tantos legumes e frutas que exporta. A renda per capita chilena , em poucos anos, superou em muito a da Argentina e a do  Brasil. Não só diretamente o consumidor chileno foi beneficiado,  também o pais, ao diversificar a sua pauta, reduzindo a dependência do país do cobre, que era o seu único produto com mercado internacional.


Na contramão da história trafega o Brasil. Excluindo as ditaduras socialistas, estamos entre as economias mais fechadas do mundo. Se não bastasse os elevados impostos, temos uma burocracia que mata de raiva um importador. Sem nenhum imposto, a indústria local  já está defendida pelas barreiras naturais: frete, burocracia, corrupção, e por aí vai. Um produto estrangeiro aqui custa mais de duas vezes do que na origem. Nem com toda esta proteção desenvolvemos uma indústria pujante.  Apesar  da boca torta, ainda hoje a Federação das Indústrias de São Paulo , FIESP, reverencia a memória de Simonsen como paladino da proteção industrial. A esta proteção devemos a  perda de vigor da nossa indústria, da nossa economia. Felizmente, a nossa agricultura teve a” sorte “  de ser ignorada pelos nossos políticos. Desprezada a ponto dos nacionalistas  cepalinos  a acusarem de ser um sinal de atrazo.









A globalização escancarou a interdependência das nações. Nenhuma, como nenhum ser humano, é uma ilha. Os produtos têm componentes  vindos de todas as partes do mundo. Ninguém consegue,  como uma autarquia,  ser produtivo. A indústria americana depende de insumos chineses, a China de chips americanos, o mundo necessita dos nossos produtos agrícolas, nós do salitre do Chile,  da fome dos  chineses… Nenhuma economia fechada é pujante e nem o consumidor é bem servido. A interdependência é uma fatalidade histórica, a qual contrariada  pelas barreiras à competição condenam as nações ao atraso. 


O protecionismo é uma peça para museu!




São Paulo, 03 de fevereiro de 2020.

Jorge Wilson Simeira Jacob


sábado, 21 de maio de 2022

 Próspera 


O mundo atual está dividido teoricamente entre duas correntes puras na  concepção filosófica de organização da vida em sociedade: o liberalismo e o socialismo. Na prática, porém, o hibridismo predomina.  É um samba do criolo doido. Há dosagens para todos os gostos. Na teoria não  faltam  grandes nomes defendendo com grande competência e ardor as duas correntes. Os liberais defendem a liberdade individual, o mérito; já os socialista, o fim das desigualdades, as carências.


Infelizmente, na prática o marxismo foi um fracasso. Infelizmente por nos privar do ideal da impossível igualdade sócio-economica. Lamentavelmente , pois quanto maior foi a intensidade da sua implantação, piores foram os  resultados. As razões são hoje conhecidas. O seu êxito dependia da reforma da natureza humana. O que não aconteceu em setenta e dois anos de prática na falida URSS e nem no meio século na China.  O desastre do experimento foi tão avassalador que hoje praticamente não se encontra mais intelectuais sérios assumidos como comunistas. Além do fato de  que no comunismo não deixaram de existir as classes. Coexistiram, sem pejo,   duas classes : o povo e a nomenclatura, que eram os porcos na versão de Orwell, no livro  A Revolução dos Bichos.


Já o liberalismo nunca foi praticado na sua pureza em nenhum país do mundo. Liberalismo tem como  ideal  de ser o Estado Mínimo o que serve melhor ao indivíduo.  Um contraponto ao demagógico apelo do tudo pelo social dos socialistas.Ao contrário do que muitos pensam, o Liberalismo é muito mais do que economia de mercado. É uma filosofia de vida.  Do Liberalismo   o que mundo reconhece é  o uso de alguns dos seus instrumentos. Entre eles o mais mencionado é o capitalismo, que surgiu com o fim do feudalismo. O capitalismo,  ao contrário do comunismo, quanto mais eficazmente foi praticado, melhores resultados apresentou. Ainda assim, mesmo praticado parcialmente,  foi   responsável por criar uma classe média então inexistente,  tirando  bilhões de humanos da miséria.  Fez a riqueza da Europa e dos EUA.


O capitalismo  tem convivido com diversos modelos de organização política: ditaduras no Chile, Singapura, China atual, que não se enquadram no modelo ideal dos liberais. Para ele ( nós) a liberdade individual tem que ser plena, só limitada pela liberdade dos outros: na política, direito de escolher os governantes com rodízio no poder; na  economia,   mercado livre  com competição legítima; e no social com igualdade de oportunidades para ascensão na sociedade. O modelo que mais aproxima-se do ideal liberal é Taiwan e a  Suíça , que são democracias  na política e capitalistas na economia.


Finalmente, por iniciativa, de liberais americanos, inclusive um neto do expoente liberal, Milton Friedman, surge um projeto de estabelecer um estado liberal de raiz . Conforme a revista Exame, de outubro de 2021 , Honduras cedeu os direitos para constituir-se em seu território uma experiência liberal. Imagine uma cidade futurista, hiperconectada e baseada no estado mínimo liberal, administrada por uma empresa privada com suas próprias leis, juízes e polícia particulares.



Esse projeto futurista está sendo construída, e se chama Próspera. Uma cidade ideal, que já ganhou o apelido de "Hong Kong do Caribe.

No papel parece quase uma utopia.

Mas ela está sendo construída pela empresa norte-americana Honduras Próspera Inc., é uma das quatro Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico de Honduras (ZEDE), desejada pelo governo conservador do presidente Juan Orlando Hernández para atrair investimentos privados, especialmente do exterior.

A cidade terá uma peculiaridade: apesar de estar em território hondurenho, será considerada como uma cidade-estado independente, sendo administrada pela iniciativa privada.

Ou seja, Próspera será governada por investidores privados, que podem escrever suas próprias leis e regulamentos, projetar seus próprios sistemas judiciários e gerenciar suas  forças policiais.

A ambição é se expandir através de Roatán a outros   locais de Honduras e, em seguida, por toda a América.

De acordo com o jornal local "La Tribuna“, Próspera oferece uma nova abordagem visionária à governança, com uma estrutura legal e regulatória pró-negócios construída sobre as melhores práticas de outras zonas econômicas especiais de sucesso em todo o mundo.

Todos os serviços públicos serão fornecidos por uma empresa privada, centralizados e automatizados por meio do e-Prospera, um portal on-line baseado no sistema e-Estônia desenvolvido pelo país europeu.

Do conforto de suas casas, constantemente online, os "Prosperanos" poderão pagar impostos, abrir empresas, fazer negócios e comprar imóveis. Até votar digitalmente.


Até o sistema jurídico será privatizado e autônomo em relação ao resto de Honduras, administrado por um Tribunal Arbitral de Resolução de Conflitos, com juízes norte-americanos aposentados.


Está chegando a oportunidade dos liberais mostraram que quanto mais eficaz a prática do liberalismo, melhores são os resultados. 



Jorge Wilson Simeira Jacob

Publicado no Jornal Opção,

Coluna Contradiçāo, em 22.05.22

domingo, 15 de maio de 2022

 


A liberdade para escolher.


Adaptação da canção:  Você já foi à Bahia, nêga?

Dorival Caymmi


Você já leu Milton Friedman, nêga?

Não?

Então lê!

Quem lê, minha nêga,

Nunca mais vai esquecê.

Muita sorte teve,

Muita sorte tem,

Muita sorte terá

Você já o viu no YouTube, nêga?

Não?

Então vê!

Você já leu A Liberdade pra escolhê?

Lá tem bom senso pra dá e vendê.

Não?

Então lê!

Lá tem ironia,

Lá tem empatia.

Se quise aprendê

Então lê!

Com a sua sabedoria

Dá lições de economia

Tudo, tudo nas suas aulas

Faz a gente  o bem querê.

Friedman  tem um jeito,

Que todo  professor quer tê!

Ele tem ideias claras, 

Domina a boa  didática

Faz simples a matemática.

Ele tem carisma,

Não deixa sisma,

No free lunch não crê!



 Caymmi, na sua linda música: você já foi à Bahia? cantou os encantos da sua terra. Eu, modestamente,  conto  o meu encanto com os textos do Milton Friedman. Mas sou entusiasta dos dois encantos. A Bahia sabe viver. Sorri  da vida. Não se leva a sério, pois deste mundo nada se leva. Sabe ser a existência uma ilusão. Ao contrário de Friedman que só ri das falácias. Leva tudo a sério.  A realidade é o que conta. Não se deixa levar pelas ilusões. Você já foi à Bahia? Não! Então vá! La tem tudo para você ser feliz. Você já leu os livros de Friedman? Não! Então leia! Lá tem muito para fazer mais esclarecidos os seus leitores.  Os seus textos são densos de bom senso e sabedoria. São lições imperdíveis. Não tem balangandãs como as baianas. Nem oferecem almoço grátis . Mas tem boa dose de ironia e bom humor. Faça um primeiro contato com o pensamento do Friedman vendo a sua série Free to choose  ( ou no livro A Liberdade para Escolher, em português ) e as  diversas entrevistas no YouTube. Será um passeio no mundo da lucidez. Como bom didata, Friedman não perde, na sua coerência, o fio da meada. Não se atém aos atalhos das falácias e nem se perde pelo canto das sereias. É tão coerente e seguro que dispensa ser amarrado ao mastro do navio para não se deixar encantar, como Ulisses. Nenhum entrevistador, em sua longa carreira, nunca o tirou da razão pura, da lógica perfeita.


Friedman surpreende com a  sua capacidade de isolar-se emocionalmente para  analisar racionalmente os fatos. Tem a virtude de   abstrair-se para  à distância para melhor analisá-los. A par de ser um pensador basilar, Friedman foi um gênio da comunicação. Genial  por ser capaz de transformar o complexo em simples, como, por exemplo, na aula sobre as   quatro maneiras de usar o dinheiro: - “quando você gasta o seu dinheiro em seu benefício; - quando usa em benefício de terceiro; - quando gasta o dinheiro de terceiro em seu benefício; - e quando gasta o dinheiro de terceiro em benefício dos outros”. Para provar o acerto da tese, basta pensar na prática destas quatro hipóteses. Na primeira, somos muito cuidadosos e na última muito menos. Portanto, se alguém preza o seu dinheiro, não deve delegar a decisão da sua aplicação à terceiros , menos ainda à burocracia governamental. 


A sua  aula sobre a função dos preços é magistral. Para muitos, o preço é só o valor a ser pago por um bem. Mas Friedman vai além. Esclarece  que o preço é um instrumento essencial para o funcionamento da economia. Qualquer interferência no sistema de formação dos preços, tem efeitos na cadeia produtiva.  O que pudemos comprovar no nosso desastroso tabelamento dos preços e no  colapso econômico da União Soviética. Sem um sistema de liberdade de determinação de preços,  a produção e a distribuição dos bens fabricados ora excediam ora ficavam aquém das necessidades. A improdutividade era a tônica da União Soviética, sem  preços de livre mercado fica impossível administrar a economia, como amargamente descobriram os economistas russos,  que não leram Friedman. Ele explicou, como ninguém, de maneira simples e convincente as virtudes da economia de mercado, nas suas aulas em A Liberdade para escolher.


Jorge Wilson Simeira Jacob

Publicado no Jornal Opção,

Coluna Contradicao, em 15.05.22

domingo, 8 de maio de 2022

 Da anarquia ao burocratismo.



Segundo o Gênesis,  no  início  era o  caos. Nada existia. Tudo foi criado. Estabeleceu-se a ordem. Surgiu depois a sociedade humana. Nos princípios, sem organização, vivia-se  sob  o regime anárquico. Não havia autoridade, nem leis e nem ordem. A primeira ordenação  social foi a família. Para  sobreviver,  unem-se em tribos para defender-se da  força bruta adversária. Organizam-se sob a liderança dos mais experientes, os mais velhos. Nasce a gerontocracia. Outros  modelos de convivência vão sendo decantados. Com o tamanho e a quantidade de tribos, criam-se as nações. O Estado, a nação politicamente organizada,  torna-se desejado. Na sequência ,   diversas modalidades  são praticadas: -  a Teocracia, legitimado pelo carisma de divindades; - a Autocracia, pelo domínio  da força; a Aristocracia, governo de uma classe; a Oligarquia, governo de poucos; e a Democracia, governo da maioria.  Sob qualquer  destes  está formatado  um Estado, cujos governos  dependem de uma burocracia para emitir as leis e os  regulamentos para a  desejada convivência social. 


A burocracia, como classe,  é  um bicho que vive na sombra. Passa despercebida. As suas ações são invisíveis, pois, com a  mão de gato, manipulam os governos a quem servem. A burocracia tem vida própria. Alimenta-se, ao pretender impor a ordem, a criar regras restringindo o espaço dos cidadãos e atendendo primeiramente aos  interesses da própria classe.  A justificativa da sua existência, vendida à opinião pública como legítima, é coibir a natureza humana, que naturalmente é abusiva e propensa a avançar os limites da convivência. Como se não fossem humanos feitos com o mesmo barro da dos governados. Têm as mesmas sementes da virtude, do desprendimento e do patriotismo, mas têm também as mesmas dosagens de egoísmo, de rapacidade e da lei do menor esforço. É da natureza humana está condição. 


A burocracia cresce exponencialmente abarcando mais e mais poder,  ao criar leis para tudo e para todos. Se não se lhes impõe limites, de uma necessidade para ordenar a vida em sociedade, tornam-se um mal. São como os alimentos pobres em nutrientes  em que a energia ingerida é inferior à consumida na digestão. O burocratismo, que é o excesso de burocracia, são pobres de energia e levam, se não contidos,  a economia à anorexia. Deveriam, por isto,  merecer dos governos controle constante - o que não acontece.



Os governos gostam de gastar. Têm razões para esta atitude. Eles não encontram resistências nem na sua própria vontade e nem dos eleitores, que enchem as urnas dos governos gastadores. Raros são os que equilibram os orçamentos cortando as gorduras dos orçamentos. A regra é o aumento dos impostos. O antídoto a esse vicio perdulário, de tirar sem limites de uns para agradar outros, é o Princípio da Subsidiariedade, que é colocar o poder decisório onde ocorre o fato, e melhor fiscalizado . Por exemplo: em vez de dar uma cesta básica, o certo é dar uma Bolsa Família, em vez da escola grátis, um voucher educação… O cidadão sabe melhor que um burocrata em Brasília qual é a melhor escola, a melhor cesta básica. Se temos ( e devemos ) de ajudar os que não têm condições mínimas de sobrevivência, que o façamos respeitando o seu livre arbítrio. 


Na guerra do Iraque, as tropas americanas, quando tiveram que lutar no deserto, ficaram imobilizadas. Não conseguiam usar as botas, que tinham as solas unidas por pregos. Estes aqueciam no calor da areia e queimavam os pés. O burocrata que comprou as botas no ar condicionado,  em Washington,  não sabia nada  do calor escaldante da areia do deserto onde seriam usadas as botas. 


E assim  caminhou a humanidade, evoluindo negativamente da anarquia, uma situação indesejada, para o burocratismo, outro mal indesejado. As nações que não combateram o burocratismo, que  cresce como um câncer, são as que comprometeram o livre arbítrio e o desenvolvimento econômico.  As que escaparam dessa armadilha são as que cultivaram o Princípio da Subsidiariedade e descobriram que  o melhor governo é o que menos governa.


Saímos do céu, evitando a anarquia e estamos terminando no inferno do burocratismo.



Jorge Wilson Simeira Jacob

Publicado no Jornal Opção,

Coluna Contradição, em 08.05.22



sexta-feira, 6 de maio de 2022

 A corrupção da inteligência.


Corrupção é uma palavra de uso comum no nosso meio. Há dela para todos os gostos. São tão constantes que já não nos surpreendem. As mais corriqueiras acontecem no governo e nas empresas. Políticos, burocratas e empresários estão na linha de frente. Alguns eventos foram tão escandalosos que já fazem parte da nossa  história . São citados com frequência: Petrolão, Mensalão, Lava Jato, Odebrecht … que chegam a fazer parte do folclore nacional. Agora, pela primeira vez, surge uma novidade, a identificação de outro padrão de corrupção - a do  intelectual. 


Com perspicácia Flávio Gordon batiza um tipo de corrupção, que existia mas estava  “ pagã”. Não tinha nome.  No livro A corrupção da inteligência (Editora Record ), o autor, em linguagem simples, direta,  apaixonada , indignada, coloca foco no que é a causa da maioria dos nossos males - a corrupção da inteligência nacional. Traz à luz um assunto que todos devem  conhecer nos seus detalhes. E o faz com grande competência e coragem. “Mata a cobra e mostra o pau” , como diz o adágio popular. São 350 páginas recheadas de nomes conhecidos, como corrompidos e como corruptores. Denúncias todas fundamentadas. Sem faltar no texto  citações eruditas e detalhes dos acontecimentos. 


Da leitura depreende-se que sem  a corrupção da inteligência e personalidade da maioria dos nossos intelectuais, não teria existido Lula, Dilma e outros.   O corruptor PT é o primeiro partido da nossa história a encarnar a noção gramsciana de “intelectual coletivo”. Diz ser  o partido dos trabalhadores, mas é, por excelência, o partido dos intelectuais.  O "trabalhador Lula" é usado pela intelligentsia local para o seu projeto de poder, no seu início.  Mas a criatura superou o criador. 


Entretanto, o seu triunfo político, segundo Gordon,  não é explicado por seu superestimado carisma e facilidade de comunicação. Lula nunca foi um político brilhante,   ( a eleição da Dilma e a corrupção sem limites e sem escrúpulos são alguns  dos seus erros de cálculo ).   Ardiloso, isto sim, e malandro, seu sucesso deveu-se muito mais aos seus vícios — à sua mais completa amoralidade, por exemplo, do que às suas virtudes. Ademais, ele partilha com Hitler um traço de personalidade que os distingue de quase todos os grandes líderes políticos e militares da história: uma autoridade histriônica e sentimentaloide, nada compatível com a têmpera de um grande estadista. Lula é pura forma sem substância.


Falando de Gramsci, referência na revolução cultural comunista, Gordon faz correto diagnóstico: a sua importância reside no fato de haver produzido uma guinada fundamental, tanto na teoria marxista quanto no método de ação política da esquerda mundial.A sua grande contribuição  foi  ter percebido, que dada a complexidade do desenvolvimento capitalista, o modelo marxista-leninista de tomada violenta de poder mediante golpe de Estado … tornara-se inadequado. Utilizando uma linguagem militar , Gramsci afirmou a necessidade de substituir uma  guerra de movimento por uma guerra de posição.Tratava-se, segundo Gramsci, de um plano de implantação do comunismo por vias democráticas . Ao dar aos “ intelectuais” o protagonismo da vanguarda da revolução, Gramsci conferiu- lhes poder, e isso recuperou a virilidade espiritual até dos mais combalidos e flácidos membros da intelligentsia.. seriam eles os novos “engenheiros das almas”, que segundo Stálin,   preparariam o povo para a futura sociedade comunista.


Rui Barbosa é lembrado por ter sentenciado que:  a degeneração de  um povo e de uma nação começa como desvirtuamento da própria linguagem .  Fica  evidente que estamos em maus lençóis. O marxismo  impregnou-se na linguagem dos formadores de opinião. No  jornalismo contemporâneo,  nada pode ser dito sem ofender ou violar alguma norma do moralismo progressista. 

A onda do politicamente correto, que corrompe a linguagem surgiu nos Estados Unidos , na esteira da contracultura com os seus conhecidos “ ismos”. Avaliada esta onda como uma verdadeira “revolução acadêmica”. Assim surgindo as chamadas políticas de identidade , deixamos de ser indivíduos, mas representantes de determinada classe, raça, gênero ou tribo. 


Não só deturpa-se a linguagem com a "novilíngua orweliana” , como escamoteando fatos dos leitores. É fato conhecido o  empenho da nossa imprensa para ocultar a existência do Foro São Paulo, e depois, quando isto já não era mais possível, minimizar a sua importância. Este revisor mesmo teve texto censurado, em dois veículos impressos nacionais. O artigo  comenta os acertos econômicos que estavam sendo implantados pelo governo Pinochet. O que hoje resultou na melhor economia entre os subdesenvolvidos.  O texto foi publicado no Estadão, por influência do redator chefe do jornal, um  amigo pessoal.


Ninguém mais do que os gramscianos para saber o peso do uso da linguagem na disputa pelo poder político. Importância  que Gordon enfatiza dando    destaque ao  filólogo Klemperer sobre o uso da linguagem no Terceiro Reich. Segundo ele: as revoluções ocorrem primeiro , e de maneira mais profunda, no domínio da linguagem… O nazismo embrenhou-se de carne e osso nas massas por meio das palavras, expressões e frases impostas pela repetição , milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente. No nosso meio, a par com o desvirtuamento da linguagem tivemos uma seleção perversa. Só tinham espaços nos veículos de comunicação os membros das tribos. Os intelectuais não comprometidos eram marginalizados. Era tão escancarada o destaque aos pensadores da esquerda que Sartre, ícone da esquerda mundial, durante visita ao Brasil, em proselitismo a favor de Cuba e Argélia, em programa televisivo, de três horas, incrédulo perguntou aos colegas brasileiros ( Fernando Henrique Cardoso e Luís Meyer) : Como é possível que uma empresa capitalista gastasse tanto tempo e dinheiro para que possamos fazer a nossa campanha pelo socialismo? A emissora, no caso a Globo, sempre foi abertamente progressista, encampando desde cedo algumas das principais bandeiras que, hoje, são moeda corrente na agenda da esquerda nacional. A respeito diz Olavo de Carvalho: …desde a década de 60 —, os altos cargos da nossa mídia são quase todos ocupados por militantes ou simpatizantes da esquerda.



Benedetto Croce distinguia entre o arrependimento moral, que condena o próprio ato como intrinsecamente mau, e o arrependimento econômico, que não abjura do ato mas apenas de suas consequências indesejadas: um ladrão envergonha-se de ter roubado; enquanto outro de não ter conseguido escapar da polícia. O arrependimento moral não significa que o criminoso não voltará a reincidir. Mas o arrependimento econômico é quase uma garantia de reincidência. O comunismo acabou. O criminoso foi desmascarado. Mas os marxistas só mostram arrependimento econômico. Voltam a reincidir nas práticas que tanto mal fizeram ao mundo. 


Os arrependidos moral, são no livro lembrados com o efeito Kronstadt, nome de uma fortaleza em que os soldados rebelaram-se da tirania bolchevique. A rebelião foi brutalmente reprimida a mando de Lênin e resultou em um banho de sangue de milhares de rebeldes. A violência da repressão dividiu os socialistas de todo mundo. Dividiram-se entre os arrependidos moral e os econômicos. Kronstadt virou sinônimo de um choque cultural que muda a visão de mundo. Quantos ex-comunistas pediram publicamente desculpas pelos crimes da falida URSS? Não conheço nenhum!


Surpreende-se Alan Charles Kors de  que, apesar de haver a maior parte dos bem-pensantes de esquerda terem  abandonado o comunismo, porém o comunismo não os abandonou totalmente. Incrível como o Ocidente tolera um duplo padrão. Abomina o nazismo, com muita razão, mas, quase sem exceção, mantém silêncio sobre os crimes do comunismo.


Por uma das incongruências da história, a ditadura militar de 1964-1985 foi considerada equivocadamente como de direita. Foi, antes de tudo, militar. Não por acaso, o único militar de viés liberal, Castelo Branco, logo sofreu um golpe, por parte dos oficiais estatólatras da linha-dura, foi o “ golpe dentro do golpe”. Não por acaso , alguns analistas do período vêm falando numa estranha derrota experimentada pelos militares: vitoriosos na política, mas fragorosamente derrotados na cultura e na memória. Foi da mente do general Golbery, grande ideólogo do regime, a ideia de entregar a cultura para as forças da esquerda, como técnica de descompressão do poder político. As esquerdas agradeceram. Não por menos que a partir dos anos 60, todo o universo da produção cultural brasileira foi ocupado pela esquerda.


A esquerda sempre flertou com o banditismo. Um famoso jornalista que afirma a necessidade de  dar voz aos bandidos; a defesa dos arrastões por parte de intelectuais esquerdista; as incessantes campanhas contra a polícia…e as recorrentes inibições de deslumbre e paternalismo de um senador petista com um rapper que vive de celebrar o crime e denegrir os agentes da lei; o empenho de partidos de esquerda em proteger menores criminosos, mesmo quando autores de crimes hediondos, etc. Toda esta cultura que celebra o criminoso como o cobrador de uma dívida social ajuda a colocar o país no topo da lista dos mais violentos do mundo. 


Olavo de Carvalho, citado, diz: Entre as causas do banditismo carioca, há uma que todo mundo conhece mas jamais é mencionada, porque se tornou um tabu: há sessenta anos os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. Como isto poderia deixar de contribuir, ao menos a longo prazo, para criar uma atmosfera favorável à propagação do banditismo?


Muito interessante é o depoimento do conhecido dramaturgo e intelectual do PCB, Dias Gomes, dando certa vez uma clara ilustração da má consciência que têm caracterizado a nossa intelectualidade de esquerda. Justificando em entrevista  a sua opção pela televisão, em especial a sua entrada na” burguesa” Rede Globo, o comunista baiano explicou: No teatro, eu vivia uma contradição, buscando fazer peças populares e alcançando apenas a elite, exatamente a elite que combatia. Todos os da minha geração vivemos essa contradição. Fazíamos um teatro antiburguês e  tínhamos como plateia a burguesia. Na televisão não. Segundo o Ibope ela é vista até por marginais. Isso, sim, é uma plateia popular.


Como já foi dito, o Partido dos Trabalhadores surgiu como partido da elite intelectual. Durante anos o PT gabou-se de que a sua plataforma partidária fosse mais bem aceita por brasileiros “ instruídos” ( intelectuais, artistas, acadêmicos ). Os mais pobres, dizia Lula, votam com as barrigas… A cúpula do partido tinha ciência de que, para tanto, eles teriam de ser conscientizados pelos intelectuais orgânicos do partido. Tanto que no 3* Congresso Nacional do PT ,  foi dito que: Sabemos que não basta chegar ao governo para mudar a sociedade. É também importante mudar a sociedade para chegar ao governo.


Depois dos escândalos da  corrupção institucionalizada  e dos desmandos na administração da coisa pública, o jeito petista de governar ficou desmoralizado. Gordon prevê que, auto-imunizados contra os efeitos  causados pela corrupção pelo seu partido, aqueles justiceiros sociais já se aplicam na montagem de uma nova e mais nociva estrutura corruptora. É assim que, gramscianamente posicionados  nas redações de jornais, nas universidades, no mercado editorial, na indústria cinematográfica, nas salas de aula, batalhões de corruptos intelectuais já se empenham na missão de reescrever a história conforme o desejo do Novo Príncipe. De acordo com a narrativa ( novilingua ) , eles terão sido , mais uma vez, os imaculados heróis da democracia, os amigos das “ coisas frágeis  e pobres” em luta perpétua contra os poderes deste mundo. Agora, resta que alguns brasileiros estejam a postos para impedir que a farsa prospere — diz,  com um suspiro de esperança , o incorrupto intelectual autor do livro.


Esta resenha dá uma ideia do poder da cultura nos destinos de uma nação. Todo cidadão consciente deveria ler o texto original para melhor entender que, enquanto estivermos sob a influência da inteligência corrompida, os nossos resultados não serão diferentes daqueles em que estamos vivendo. O futuro só voltará a nos sorrir quando tivermos nas salas de aula, nos teatros, na imprensa, nos três poderes da Nação,  discursos não comprometidos com o socialismo, que enalteça  as virtudes e não os vícios.



Jorge Wilson Simeira Jacob

Publicado no Jornal Opção

Coluna Contradição