quinta-feira, 30 de junho de 2022

 O ETERNO PAÍS DO FUTURO.


Brasil, País do Futuro

Stefan Zweig

Editora Civilização Brasileira, 264 páginas.


Brasil, Eterno País do Futuro.

Alberto Ravizzoli

Editora Createspace, 496 páginas.



Stefan Zweig , da década de 1920 e até sua morte, foi um dos escritores mais famosos e vendidos do mundo. Suicidou-se durante seu exílio no Brasil, deprimido com a expansão da barbárie nazista pela Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. Fugiu do nazismo  mudando-se para Petrópolis. Aqui foi recebido com entusiasmo tanto pela comunidade intelectual local quanto pelas autoridades políticas. Para os intelectuais brasileiros, a presença de tão renomado escritor em terras nacionais trazia prestígio e oportunidades de um intercâmbio com outros escritores estrangeiros.


Zweig era um apaixonado pelo Brasil, que o acolheu em um momento difícil da sua vida. Passou pela Inglaterra e Estados Unidos, mas fixou residência em Petrópolis, onde a sua antiga residência é aberta à visitação pública. Na sua despedida, antes do suicídio, ele deixou escrito: “Cada dia eu aprendi a amar mais este país e não gostaria de ter que reconstruir minha vida em outro lugar depois que o mundo da minha própria língua se afundou e se perdeu para mim, e minha pátria espiritual, a Europa, destruiu a si própria”. 


Nos idos dos anos quarenta ( 1941 ), Stefan Zweig escreve o clássico Brasil, Um País do Futuro, a pedido do ditador Getúlio Vargas.  Aproveitando-se da oportunidade, desejando promover o Brasil, encomenda  a Zweig um livro laudatório ao país. O livro foi lido mundo a fora , foi considerado ufanista demais, mas deu o slogan nacional. Desde então, nós brasileiros estamos aguardando a promessa realizar-se. Os inconformados, conscientes do potencial brasileiro, não aceitam calados o Brasil não estar situado  no topo das nações mais desenvolvidas. Quase um século passado da previsão otimista de Zweig,  como  marco civilizatório, o país avançou pouco.




A gente brasileira.


A sua sensibilidade de escritor captou o caráter da gente, que o encantou. Não deixando, entretanto,  de enaltecer  a beleza e a riqueza da terra. Não faltam no livro análises sobre a cordialidade dos locais, que ele certamente confronta com os da sua origem. O que ele expressa neste trecho do livro:  “ Agora se sabe por que a alma fica tão aliviada logo que pisamos nesta terra. No primeiro momento tem-se a impressão de que esse efeito libertador e calmante é apenas uma alegria para os olhos, uma absorção feliz daquela beleza única que acolhe o recém-chegado com os braços bem abertos. Logo, no entanto, reconhecemos que essa disposição harmônica da natureza aqui passou a ser o modo de vida de uma nação inteira. Algo de inverossímil e de benfazejo envolve aquele que acabou de fugir da absurda loucura da Europa: a total ausência de qualquer hostilidade na vida pública e na privada. [...] Todas as contradições, mesmo no campo social, são significativamente menos acentuadas e, sobretudo, menos envenenadas. A política, com todas as suas perfídias, ainda não é o eixo da vida privada nem o centro de todo o pensar e sentir. Logo que se chega ao país, a primeira surpresa, que se renova diariamente de maneira feliz, é descobrir a maneira gentil e pouco fanática com que as pessoas convivem naquele espaço imenso”.


Por que as previsões do Zweig, passados quase um século não se realizaram?



Alberto Ravizzoli, em texto mais recente, Brasil, O Eterno País do Futuro, prometia ser uma resposta aos inconformados. Ravizzoli é ponderado ao alertar de que a par das nossas mazelas temos virtudes e qualidades que ensejam oportunidades. Entre as nossas desvantagens está o patrimonialismo: “ os empregos públicos são a grande moeda de troca nos conchavos políticos. O governo americano tem 8.000 cargos de confiança, a França, 4.000, a Inglaterra 300… e nós temos 26.000 dirigentes indicados politicamente para mais de 1 milhão de funcionários concursados. O Brasil mantém uma das mais complexas estruturas burocráticas do mundo. Em matéria de complexidade e ineficiência perdemos para o Paraguai e Ruanda. O sistema tributário é péssimo. Entre 1988 e 2012, foram editadas mais de 290.000 normas tributárias - cerca de 30 por dia.A Justiça do Trabalho conta com 41.000 servidores, custou  11 bilhões de reais em 2011 aos cofres públicos. 

Esses e outros problemas fazem necessário cinco trabalhadores brasileiros para produzir o equivalente a um americano”.


A questão racial.


Um capítulo dos mais interessantes é o que analisa a questão racial.Segundo  Ravizzoli, temos a vantagem de nunca termos tido  um regime jurídico de segregação da população negra, o que nos fez uma democracia racial. O nosso problema não é o racismo, mas sim a pobreza, e as desigualdades não são raciais, mas são sociais. Temos sim uma sociedade dividida, não igual, onde um garoto negro tem mais chances de morrer de forma violenta e ter menores salários no mercado de trabalho do que um branco.


Questão Social e Questão Racial.


Não se pode prescindir de dois aspectos singulares para compreender o Brasil: o preconceito de classe e o preconceito racial. A questão social atravessa a nossa história como fruto das desigualdades econômicas, políticas e culturais. Apesar do preconceito e discriminação racial não serem exatamente a mesma coisa, são práticas frequentemente associadas como irmãs gêmeas do racismo. 


O Brasil é apontado alhures como terra da miscigenação, tolerância e igualdade racial. A ilusão de uma democracia racial faz, sem dúvida, confundir uma realidade complexa, na qual o preconceito se pratica, mas não se assume. Há todavia, um tipo de problema que a experiência histórica  do Brasil praticamente desconhece: a cultura do ódio racial, exemplificado na Ku Klux Klan. 


Ainda que tenhamos a segunda maior população negra do mundo, mas a condição existente do mulato funcionou como uma válvula de mobilidade social de onde advieram dois resultados: dividiram o que poderia ser uma comunidade negra unida por um destino político comum e esvaziaram as possibilidades de conflito racial. Outro fator que dificultou à emergência de um discurso de mobilização racial foi a não legalização , ou a não formalização, do racismo.


Política e Poder. A ilusão democrática.


O autor aborda extensamente a organização politica- partidária do Brasil. Se na parte dedicada à sociologia há boas análises críticas até originais, na descrição da política deixa a desejar. Vale como um arquivo didático , mas pouco criativo.


O teorema de Tom.


O escândalo da contabilidade criativa, que o autor correlaciona com a Teoria de Tom, refere-se ao desastroso governo Dilma Rousseff, que maquiou as contas públicas. Essa expressão é atribuída ao compositor Tom Jobim, que costumava dizer que “ o Brasil não é para amadores”. Ele referia-se a facetas dos usos e costumes nacionais, como: as leis que pegam, o que parece ser mas não é, e o vice-versa.



Custo Brasil: a ineficiência da logística 


Como consequência da má administração pública e de um Estado  disfuncional, o custo Brasil impede o desenvolvimento. O autor não é conclusivo. Aponta as diversas facetas, favoráveis e desfavoráveis para a paz social e o desenvolvimento, mas não assume uma posição. O que seria fácil concentrando o foco nos efeitos da gestão pública: um Custo Brasil que empobrece a população por encarecer a vida e impedir a competitividade internacional do País.


Vejamos alguns dados do último capítulo:

 - o Brasil ocupa a 104* lugar no item “Qualidade da Infraestrutura “;

 - a malha ferroviária é oito vezes menor do que a americana;

 - a malha pavimentada é 20 vezes menor do que USA e   da Índia, proporcionalmente.

 - os portos são poucos e congestionados;

 - as frequentes greves do fiscais da Receita Federal  nos portos e aeroportos dão insegurança operacional

 - o transporte de 1 tonelada de grãos por caminhão ( 1.600 Kms ) é de US$ 145 no Brasil; US $36 na Argentina e menos de US $25 nos EUA.


Segundo a Fundação Dom Cabral de 2013, as perdas das empresas com a logística no Brasil é estimada em 4% do PIB.


Este livro é um convite aos inconformados para entender o por que fizemos deste território imenso e rico, habitado por uma gente cordial, o Eterno País do Futuro.


São Paulo, 26 de junho, 2022.

Jorge Wilson Simeira Jacob


sábado, 25 de junho de 2022

 A OPORTUNIDADE PERDIDA.


As empresas caminham para a morte.  Todas   têm um ciclo de vida: nascem, crescem e morrem. As empresas geralmente crescem baseadas em algum tipo de inovação.  Quando as inovações  são copiadas e multiplicadas, aumenta a competição, a lucratividade cai. Ou as empresas adaptam-se ou somem. Serão substituídas por novas  empresas ou administradas com novas ideias, vindas das inovações .

 

É de  Joseph Alois Schumpeter, economista austríaco,  a teoria do crescimento e desenvolvimento econômico, ao considerar a figura central dos homens de negócio, da inovação e da constante destruição como pilares do capitalismo. A “destruição criativa”, como denominada por ele, é que enseja o desenvolvimento econômico. Ideias morrem… e outras nascem.Empresas que não se adaptam são substituídas. Alimentando um círculo virtuoso.


Assim como as empresas, as nações ganham ou perdem a liderança no mercado mundial nas ondas inovadores . A história econômica recente registra uma série delas que alteraram as posições das nações no ranking  internacional. A Revolução Industrial , por exemplo, impulsionou o desenvolvimento da Inglaterra. O Fordismo alavancou a  economia americana. A Informática deu posições vantajosas aos países asiáticos.  A Globalização deu vida à indústria chinesa, colocando-a como a segunda potência econômica mundial. 


Agora, estamos vivenciando as consequências de uma nova    onda de inovação. A indústria asiática,  produtora de produtos de baixo valor agregado, começa a disputar os mercados de produtos sofisticados: telefonia 5 G, Chips, celulares e  computadores, Inteligência Artificial… E sua  vantagem competitiva não se limita ao domínio tecnológico, mas se completa com uma mão de obra qualificada, disciplinada e laboriosa. Toda a corrente de produção é produtiva  e confiável. Não há sobressaltos nos  acordos negociados. Os salários baixos, como razão única  da competitividade, é coisa do passado e os produtos têm tecnologia avançada e preços competitivos pela economia de escala. Por isto são  consumidos  mundo afora. 

 

Tudo ia bem até a “rebelião trumpiana” à ameaça chinesa, impondo barreiras e dificuldades aos importadores americanos. Foi um choque na  Globalização, que se amplificou com a guerra Russa-Ucrânia e a pandemia, que desestruturaram a cadeia de suprimentos e transportes. O que tem levado os grandes produtores mundiais a questionar o risco da concentração dos fornecimentos e desejar alternativas . As nações e as empresas precisam adaptar-se à nova realidade para sobreviver. 


Estamos, pois, neste momento da história, como em todas as crises geradas por mudanças radicais, frente a oportunidades e ameaças. A pergunta objetiva, diante deste desafio, é :  o Brasil beneficiar-se-a das oportunidades presentes?    A resposta seria um parcial “ sim”.  Parcial por termos um histórico de insistirmos ao longo da história em perder oportunidades. Somos campeões mundiais de ignorar a sorte.


É  provável melhorarmos a nossa competitividade na área da agricultura. Pois , podemos melhorar ( e estamos fazendo ), a produtividade agrícola. Poderíamos, (e  não estamos fazendo ) ter melhorias na   infraestrutura de escoamento da produção e a simplificação burocrática para as exportações. Estamos muito defasados em relação aos grande produtores agrícolas do mundo. Mas temos vantagens geográficas incomparáveis, uma fronteira agrícola expandível  e um empresariado agrícola muito competente, que torna provável tirarmos benefícios do momento.


Infelizmente, não é provável uma significativa melhoria na nossa competitividade industrial. Não somos um substituto confiável na economia globalizada para fornecedores da cadeia globalizada. As nossas instituições são do arco da velha: - as leis e  regulamentos são complexos, burocráticos e volúveis;  -  o nosso judiciário está congestionado . Temos dos  maiores   contenciosos judiciais do mundo; a qualificação profissional deixa a desejar; estamos atrasados em relação ao marco civilizatório e um dos maiores nível de violência urbana do mundo. Pontualidade, respeito ao contratado, rigor na qualidade do trabalho e a rapidez decisória nos colocam desconfortavelmente em posição de igualdade com os latinos em geral. A consequência é termos uma cadeia produtiva de baixa produtividade. Não só produzimos caro como somos lentos para atender as solicitações dos compradores. Uma consulta a uma empresa chinesa tem resposta em horas, na brasileira em meses. E na  competição, a velocidade é tão importante quanto a qualidade da decisão.


Quando Trump  criou barreiras às importações chinesas, pedindo que as empresas americanas substituíssem a China como fornecedor, recebeu como resposta  não existir alternativa à mão de obra disciplinada e competente chinesa. Não era questão de preço ou de querer. Portanto, a atual onda trará oportunidades, mas a indústria brasileira  não está preparado para tirar proveito dela. O nosso parque industrial nunca foi submetido  à competição internacional. Tanto assim que é insignificante no mercado global .Os Estados Unidos continuarão a depender da China. Ou irão produzir no próprio país. E nós , mais uma vez vamos correr o risco de perder o bonde da história ! 


Não há custo maior do que a oportunidade perdida! Por isto, de tanto perder  oportunidades, temos uma parte da  população na miséria.



Publicado no Jornal Opçāo,

Coluna Contradição, em 26.06.22

Jorge Wilson Simeira Jacob





quarta-feira, 22 de junho de 2022

 O JULGAMENTO DE SÓCRATES.


Mais de quatro séculos separam dois julgamentos históricos. O de Sócrates em 399 a.C e o de Cristo em 30 ou 33  d.C. Havia muito em comum nestes dois processos. Os acusados  eram inocentes, mas  foram condenados à morte. Sócrates à cicuta e Cristo ao crucifixo. Ambos  acusados  de conspirar contra o governo. Nenhum deles  deixou nada escrito. As  suas ideias foram transmitidas pelos seus discípulos, Platão e Xenofonte, no caso de Sócrates , e apóstolos, no de Jesus. Eles tinham em comum nenhuma ambição materialista. Viveram como pobres, mas as suas ideias incomodavam os poderosos. Morreram por sua dedicação , Sócrates em busca da verdade e Cristo, das almas.


O julgamento de Cristo tem sido contado em prosa e verso desde a sua morte. Representações relembram, nos aniversários,  o julgamento, martírio e ressurreição de Cristo.  O de Sócrates não é  comemorado, mas tem merecido de muitos historiadores análises do seu processo.   Isidor Feinstein Stone ( I .F. Stone desde 1937), autor do livro O Julgamento de Sócrates, jornalista influente, dedicou dez anos ao estudo da Grécia antiga e de Roma. Tornou-se um especialista no julgamento de Sócrates — que, acusado de corromper a juventude com suas idéias, foi condenado a beber cicuta. Stone, justificando o seu interesse no julgamento de Sócrates, cita o seu desconforto de que este fato pudesse ter acontecido em uma sociedade tão livre. Era uma nódoa na reputação de Atenas e da liberdade que ela representava.


Se tivesse sido absolvido, Sócrates talvez fosse lembrado como um figura menor do mundo ateniense. Foi Platão quem criou o Sócrates de nossa imaginação. Até que ponto ele é produto do gênio criativo da narrativa de Platão? Sem o personagem enigmático e intrigante de Sócrates, as obras de Platão não seriam consumidas até hoje.


O julgamento de Sócrates foi realizado no ano 399 a. C. . Como pode um repórter cobrir um julgamento ocorrido há 2,400 anos? Com a  leitura de diversos contemporâneos de Sócrates: Aristófanes, Aristóteles, além de Platão e Xenofonte, que  mostram um personagem : xenofontico, platônico e aristotélico. Qual é o  verdadeiro Sócrates?






SÓCRATES E ATENAS - AS DIVERGÊNCIAS BÁSICAS.


Com base apenas nos textos de Platão, Sócrates entrou em conflito com os seus concidadãos por exortá-los a praticar a virtude, uma atividade que sempre gera antipatias. Porém de uma visão mais ampla do problema, havia divergências  profundas entre ele e os atenienses de sua época. Três são as questões filosóficas básicas , que tocavam nos fundamentos do sistema de autogoverno de que gozavam os atenienses: a primeira e mais fundamental dessas discordâncias dizia respeito à natureza da comunidade humana. Seria ela a pólis — a cidade livre? Ou, como disse Sócrates muitas vezes, um rebanho?


A divergência era fundamental. Nas cidades-Estado gregas em geral , bem como na república romana, a política era uma espécie de luta de classes partidárias. Os dois lados concordavam que a cidade deveria ser governada por seus cidadãos. Mas deveria ser restrita  como nas oligarquias ou ampla como nas democracias? Deveria a cidade ser governada pela minoria, os ricos, ou pela maioria, os pobres? Todos concordavam que com o autogoverno o ser contra não era apenas ser antidemocrático: era ser anti-político  Esta era a visão que tinha Sócrates da maioria de seus conterrâneos.Ele não defende nem a oligarquia nem a democracia. Sócrates defendia a ideia de que a governança deve caber “ a quem sabe”. Para os seus conterrâneos,  isto parecia a volta à  monarquia em sua forma mais absoluta.


Sócrates coloca-se na posição de adversário de todas as formas de governo existentes. Ele rejeita a todas: a monarquia na forma tradicional; a democracia escolhida pela multidão; a tirania  que deriva da força. E concluía: os reis e governantes verdadeiros e ideais são “ aqueles que sabem governar”. Ele propunha um governo exercido por peritos. Não conheço ninguém, conclui Sócrates, “ que tenha se revelado um bom estadista nesta nossa cidade”. “ Creio que sou um dos poucos — para não dizer o único — atenienses que tentam praticar a verdadeira arte do estadista”. Certamente este não foi um dos seus  momentos de maior modéstia.


Na Memoráveis, Sócrates afirma o princípio básico de governo de que “ cabe ao governante dar ordens e aos governados obedecer “. Um princípio autoritário rejeitado pelos atenienses, que tinham como ideal a igualdade. Era fundamental, em  todas as cidades gregas , a igualdade dos cidadãos. A premissa socrática era a de uma desigualdade básica, onde ninguém  era cidadão, mas todos eram súditos.


Na época de Sócrates, a monarquia já desaparecera das cidades-Estado gregas. Em Esparta, que era admirada pelos socráticos, a única cidade grega onde havia reis hereditários, a autoridade deles não ia além do poder em tempos de guerra. Nesta circunstância os reis atuavam sob a supervisão dos éforos, representantes do poder executivo. Eram dois, cada um de uma família real diferente, cuja divisão da autoridade e a rivalidade limitavam-lhes o poder.

Em Roma, como nas cidades-Estado gregas, a monarquia já tinha sido derrubada muitas gerações antes da época de Sócrates.  Ele e seus seguidores estavam em total descompasso com a sua época quando propunham uma forma de  monarquia, fosse qual fosse.


SÓCRATES E HOMERO


Sócrates remonta aos tempos homéricos para encontrar o rei ideal  na figura lendária de Agamenon.  Agamenon, pode tres sido um “guerreiro valoroso”, mas não foi o rei absoluto que Sócrates idealizava. Não era um Luís XV. O Estado não era ele. Agamenon não podia simplesmente dar ordens e esperar ser obedecido.


Se um democrata ateniense passasse da Ilíada para a Odisseia, encontraria outro argumento homérico contra o ideal socrático de realeza, na cena que Odisseu encontra com os ciclopes. Neste episódio, Homero estabelece a distinção entre o homem civilizado e o não civilizado. Odisseu desprezava o homem não civilizado porque ele”  não se importava com os outros”.


As leis das comunidades civilizadas só se aplicam dentro dela. Fora dos seus domínios, as outras terras podem ser livremente saqueadas. Freud acreditava que os impulsos anárquicos que os homens reprimem para possibilitar a vida em sociedade encontram válvula de escape na mortandade em massa da Guerra. E aí a verdade da observação de Aristóteles,  segundo a qual o homem, quando aperfeiçoado pela vida comunitária , é o melhor dos animais, mas, quando separado da lei e da justiça, é o mais selvagem.


UMA PISTA NO EPISÓDIO DE TERSITES.


Sócrates, por um” acusador “ não identificado, foi acusado por corromper os jovens. Para ouvidos modernos, parece envolver uma acusação de homossexualismo. A pederastia era socialmente aceita na Grécia clássica. Não mais do que um erro de tradução pode ter levado a atribuir a Sócrates este comportamento. Sócrates subverteu ou alienou os jovens, os levando a desprezar as leis atenienses … dispostos a usar a força para derrubar a Constituição.

Sócrates, por outro lado, “ mostrava-se um homem do povo e amigo da humanidade”, pois , jamais auferiu proveito algum em termos financeiros, sempre se dava “ sem reservas…a todos”.


Nas Memoráveis de Xenofonte não há referência à opinião de Sócrates com relação a Tersites, mas o Sócrates platônico considerava-o um bufão , um criminoso comum. 

No final da Apologia, de Platão, quando despede-se dos seus juízes , Sócrates afirma que, se tiver outra vida, antegoza o prazer de conversar com os grandes homens do passado.


Entre as divergências filosóficas fundamentais, entre Sócrates e Atenas, estava a o encarar a comunidade humana como um rebanho a ser governado por um rei, como ovelhas por um pastor. Os atenienses acreditavam — como afirmou Aristóteles mais tarde —que o homem era um animal político, dotado de lógos, ou razão, e desse modo capaz de distinguir o bem do mal e de autogovernar-se. Não era uma diferença trivial,



A NATUREZA DA VIRTUDE E DO CONHECIMENTO


A segunda divergência, entre Sócrates e a sua cidade, dizia respeito a duas questões, que Sócrates, mas não a sua cidade, considerava inextricavelmente associadas: a virtude e o conhecimento. Se a virtude é conhecimento, então seria passível de ser ensinada . Se fossem capazes de adquirir virtude, a maioria poderia reivindicar uma participação no governo da cidade.


Mas Sócrates, ao abordar a questão do que é o conhecimento, ensinava que ele só poderia ser atingido, através da definição absoluta.Sócrates demonstrava que tal conhecimento era inatingível…Com modéstia, afirmava que, nesses sentido, a única cousa que sabia era que nada sabia.


A defesa da democracia só é apresentada a Sócrates uma única vez. Ele esquiva-se afundando numa névoa semântica. É contra a democracia que Solon , dois séculos antes, adotou dando  aos cidadãos o direito de votar. O quanto isto foi revolucionário, basta lembrar que os homens sem propriedade só adquiriram o direito de voto na Europa Ocidental no final do século XlX e nos Estados Unidos depois de 1820.


A CORAGEM COMO VIRTUDE


Sócrates entende que a coragem é um componente fundamental da virtude e propõe que a coragem é também conhecimento. Num diálogo, o Laques, Platão faz Sócrates discutir a natureza da coragem com dois  eminentes generais atenienses, Nicia e Laques. O diálogo logo transforma-se num espetáculo cujo protagonista único é Sócrates. Nenhum dos dois sabia definir a coragem. Nesse sentido eles não tinham conhecimento dela. Contudo, os dois eram considerados corajosos nos campos de batalha e sabiam distinguir um covarde de um homem bravo.


Sócrates era mestre de uma dialética negativa que conseguia destruir toda e qualquer definição ou proposição que lhe fosse colocada. Raras vezes formulava uma proposição definitiva. O sofista Hípias, recusando o desafio de um debate, diz que: “Sócrates zomba dos outros, questionando e examinando todos, jamais propondo uma ideia ou opinião sua a respeito de coisa alguma”.


Em  acusação contra a dialética negativa de Sócrates , Cícero em seu tratado Sobre a natureza dos deuses, afirma que ele criou “ uma dialética puramente negativa, que se abstém de pronunciar qualquer julgamento positivo” . Santo Agostinho faz observação semelhante, em sua Cidade de Deus, queixa-se dos que “ acreditam poder defender-se do erro acautelando-se ao não se comprometer com proposições positivas”. Agostinho chega a dizer ter sido essa dialética negativa o que gerou o antagonismo que levou ao julgamento de Sócrates , pois Sócrates “ costumava ridicularizar e atacar a leviandade dos iletrados”. Entre os quais ele incluía a gente comum, mas seus líderes e todos os outros mestres rivais, o efeito sobre os seus interlocutores era frustrá-los ou mesmo irritá-los. Criou inimizades e foi condenado por uma acusação falsa e punido com a morte.


Um dos aspectos interessantes da personalidade de Sócrates era a sua atitude em relação ao ensino. Recusava a condição de professor. Mas jamais  praticou outro tipo de trabalho. Vivia de pequena herança do pai. Ele passava o tempo entre as colunatas de Atenas e nos ginásios conversando sobre filosofia com quem quisesse ouvi-lo. Em seus discursos, exorta os cidadãos à virtude, mas afirma que é impossível ensinar virtude. Identifica a virtude com o conhecimento, mas insiste que esse conhecimento é inatingível, e não pode ser ensinado.


Após fazer os seus interlocutores sentirem-se incapazes e ignorantes, Sócrates confessa que ele nada sabe. Com base nas circunstâncias, podemos inferir o do por que   negar ser professor. Insistia  que nem a virtude nem o conhecimento eram passíveis de ser ensinados. Na sua recusa três motivos são possíveis: político, filosófico e pessoal. Os três convergem e se reforçam mutuamente. O motivo político tem a ver com a sua visão antidemocrática. A doutrina socrática segundo a qual “ aquele que sabe” deve mandar, e os outros obedecer, seria abalada se a virtude e o conhecimento pudessem ser ensinados. A razão filosófica está ligada à busca da certeza absoluta.


Xenofonte, em trecho das Memoráveis, “ o acusador “ afirmava que os ensinamentos antidemocráticos de Sócrates fizeram com que os jovens “menosprezassem a Constituição em vigor e tornarem-se violentos”. Não dispomos de provas de que Sócrates tenha defendido a derrubada da democracia pela força. Sócrates preferia a persuasão à violência. 

A ideia socrática de que virtude é conhecimento tem um corolário famoso: a ideia de que ninguém faz o mal voluntariamente. As pessoas fazem o mal “ por não saber o que estão fazendo”. As vezes é verdade, mas só indivíduos na escala mais baixa da humanidade não saberão a diferença entre o bem e o mal.


UMA BUSCA INÚTIL: SÓCRATES E AS DEFINIÇÕES ABSOLUTAS.


Para Sócrates, quando não se podia definir uma coisa de modo absolutamente abrangente e invariável, então não se sabia o que era essa coisa. O que não tinha definição absoluta era doxa, ou simples opinião.  

Aristóteles reconhecia que Sócrates inaugura a questão da definição, sendo esta a maior contribuição de Sócrates à filosofia. A busca socrática de definições veio desempenhar um papel central . Levou os seus discípulos a seguir em duas direções opostas. Uma das direções leva ao ceticismo completo, à negação da possibilidade do conhecimento. A outra — de Platão— leva a criação de outro mundo…um mundo de ideias eternas e imutáveis, que é tomado como o mundo real.


Cada discípulo de Sócrates extraiu das suas aulas conclusões diferentes , e desenvolveu  diferentes sistemas filosóficos. Mas todos, sem excessão, tiraram conclusões contrárias à democracia.


Por que motivo na Apologia de Platão  Sócrates relata a história do oráculo de Delfos? E por que Sócrates afirma que o oráculo lhe impôs uma missão divina — a missão de questionar seus concidadãos, especialmente os notáveis de Atenas? Sócrates diz aos juízes que havia se tornado suspeito na cidade. Seus concidadãos perguntavam : Sócrates, o que há com você? De onde provém os preconceitos contra você? Para explicar , relata o episódio do oráculo de Delfos, que  afirmava não existir ninguém mais sábio que ele.



Ao utilizar aquela dialética negativa, que era o seu forte,   Sócrates pedia definições que ele  mesmo jamais seria capaz de formular, e em seguida refutava com facilidade qualquer definição que seus interlocutores propusessem, com  artifícios verbais muito semelhantes aos que atribuía aos sofistas — os jogos de palavras que até hoje denominamos de” sofismas”.


Há um diálogo, no Górgias , em que o Sócrates platônico tira a máscara da falsa modéstia — a pretensão de “saber que nada sabe” . Nesse diálogo, ele trata com desdém os quatro maiores líderes atenienses citados. Afirma que ele é um dos poucos , “senão o único “ , verdadeiro estadista que Atenas jamais gerou, conquistando a antipatia de quase todos políticos atenienses. 


Esses quatro grandes  líderes — assim como as qualidades do povo ateniense — tornaram possível as glórias de Atenas. São essas realizações que Sócrates platônico põe de lado com uma arrogância  irritadiça e rabugenta.

Não quero dizer que Sócrates foi levado a julgamento por caluniar os estadistas atenienses. Insultá-los não era crime na cidade.  O que havia de insultuoso  no que ele dizia eram as simplificações grosseiras contidas nas premissas filosóficas.

A fórmula socrática de que o governo cabe àquele “ que sabe“ já contém o germe do conceito platônico de rei-filósofo. Ninguém possuía as qualificações perfeitas e absolutas que Sócrates exigia — nem ele mesmo, admitia. E a cidade onde ficava? Num beco sem saída. Era a ele que a dialética Socrática levava.


SÓCRATES E A RETÓRICA 


Como tudo na literatura grega, a oratória, e retórica teve origem com Homero. No entanto, ela assumiu importância nova e crucial nas cidades-Estado gregas, pois nas assembleias os cidadãos tinham de falar com clareza e argumentar persuasivamente para defender os seus interesses. O Sócrates platônico desdenha a retórica.  Segundo ele, o orador deve começar a aprender a natureza da alma e suas relações com o divino. 


 Górgias , um dos mais famosos professores de oratória de sua época , diz que a retórica é “ uma atividade que não é questão de arte, mas de exibir um espírito astuto e galhardo com uma tendência natural a saber lidar com os homens de modo ardiloso”.  Aristóteles acredita ser útil; que o melhor e  o bom é sempre mais fácil de provar; e que os homens têm para a verdade uma  capacidade natural que é suficiente…


A dialética negativa de Sócrates — se a cidade a tivesse levado a sério — teria tornado inviáveis a equidade e a democracia. Ao identificar a virtude com o conhecimento inatingível, Sócrates privava de esperança os homens comuns e negava sua capacidade de se autogovernar.


O IDEAL DA VIDA: A TERCEIRA DIVERGÊNCIA SOCRÁTICA 


Aristóteles afirma que um homem sem cidade é como “uma peça solitária em um jogo de damas”. Ele só adquire significado quando se associa a outras pedras no jogo. O indivíduo só pode viver bem quando se associa a outros na comunidade. E isso nos leva a uma terceira questão filosófica fundamental , em relação à qual Sócrates divergia de seus concidadãos. Sócrates pregava e praticava a não participação na vida política da cidade.


Escreve Aristóteles: o homem solitário vive num mundo em que a própria palavra “ justiça “ não tem significado. O problema da justiça só se coloca numa comunidade.Mas é extraordinário constatar que um ateniense tão notável, como Sócrates, conseguiu ao longo de setenta anos de vida, não ter praticamente nenhuma participação nos negócios cívicos.

Na Apologia, Sócrates apresenta uma desculpa indigna por nunca ter participado na vida política da cidade. Indaga aos juízes: “ Julgais que eu teria vivido tantos anos se houvesse tomado parte na política atuando como homem de bem, batendo-me pela justiça e dando a essa atitude a máxima importância”? 


OS PRECONCEITOS DE SÓCRATES 


Uma vez — apenas uma — Sócrates aconselha  um discípulo a entrar para a política. Cármides, tio de Platão, reluta devido à timidez de participar dos debates da Assembleia. Sócrates o estimula perguntando: “ quem são as pessoas que o fazem ter vergonha?”   Então põe-se a enumerar as profissões comuns e — para ele — vulgares: os sapateiros, os ferreiros, os negociantes … Sócrates os enumera com desdém. Trata-se de um típico preconceito. Estranho na boca de um filósofo com as origens sociais de Sócrates. 


Sócrates é admirado por seu inconformismo, mas porcos-espinhos dão conta de que ele se rebelava contra uma sociedade aberta e admirava uma sociedade fechada. Era um dos atenienses que desprezavam a democracia e admiravam Esparta.


Tanto em Xenofonte quanto em Platão fica claro que Sócrates era admirador de Esparta. O trecho mais famoso que evidencia este fato está no Críton, de Platão. Críton, um dos mais dedicados discípulo de Sócrates, em visita a Sócrates depois do julgamento, trama a sua fuga. Sócrates recusa-se a ser salvo. Recusa-se a violar a lei. Sócrates pede a Críton que imagine o que diriam as Leis de Atenas se elas aparecessem na cela para discutir a questão com ele. 


Nessa conversa imaginária com as Leis, expõe-se o conceito de que a lei é um contrato entre o Estado e o cidadão individual. Essa é a primeira aparição do contrato social.

O diálogo entre Sócrates e as Leis é interrompido cedo demais.  Se as Leis tivessem perguntado a ele o motivo de não emigrar para Esparta. A resposta óbvia seria constrangedora.  Os filósofos não eram bem recebidos em Esparta e nem em Creta.


Após a condenação de Sócrates, Platão fugiu de Atenas. Por fim desistiu do exílio voluntário de doze anos  e voltou para fundar a sua academia. Durante quarenta anos da vida que lhe restaram  passou ensinando filosofia antidemocrática sem ser molestado e sem dizer palavras de agradecimento à liberdade que Atenas lhe proporciona.


POR QUE ESPERARAM TANTO?


As peças de Aristófanes e os  fragmentos  de outros poetas cômicos revelam o inconformismo socrático. Ele não agia clandestinamente. Suas opiniões eram manifestadas em qualquer esquina.Todos tinham liberdade para ouvi- lo. Sócrates ser  de fato um dos alvos favoritos dos poetas cômicos não significa que tivesse má fama. Os atenienses gostavam dos personagens excêntricos. O próprio Sócrates tinha muito senso de humor. Frequentemente zombava de si mesmo. Contudo,  na Apologia Sócrates atribui o preconceito contra ele aos poetas cômicos. No início da sua defesa diz que não pôde confrontá-los por serem anônimos. Queixa-se que os juízes eram levados a vê-lo como “ um sábio a pesquisar as coisas que há no céu e sob a terra, que nem acreditam nos deuses, a fazer com que o argumento mais fraco prevaleça sobre o mais forte. 


A palavra teologia — o discurso sobre os deuses — surge pela primeira vez na República, quando Platão explica o que os poetas em sua utopia terão o direito de dizer a respeito dos poderes divinos. Nesta sociedade ideal, um Sócrates seria  punido por divergir da theologia oficial, mas não em Atenas.

A genialidade e o amor de Platão fizeram de Sócrates uma espécie de santo profano da civilização ocidental. Ele meteu-se em apuros por causa das suas ideias políticas, não por suas concepções filosóficas ou teológicas.



Quando alguns livres-pensadores resolveram ocupar-se da natureza dos deuses, os resultados foram devastadores. Em nossa Bíblia , Deus criou o homem à Sua imagem. Xenófanes, um século antes, virou de cabeça para baixo essa concepção antropomórfica e afirmou que eram os homens que criaram os deuses à sua imagem. Os etíopes tinham deuses “com narizes achatados e cabelos negros”, enquanto os tracios  adoravam deuses que “tinham olhos cinzentos e cabelos vermelhos”.


OS TRÊS TERREMOTOS.


Não havia promotor público em Atenas. Qualquer cidadão podia apresentar acusação em juízo. Por que só aos setenta anos foi Sócrates vítima de uma acusação formal ? A resposta, a meu ver, pode estar em três “terremotos “ políticos que aconteceram dez anos antes do julgamento. As datas desses acontecimentos são 411, 404 e 401 a. C.. Em 411 e em 404, elementos em conivência com os espartanos , derrubaram a democracia e estabeleceram ditaduras, instaurando o terror. 


Em 401 a. C., dois anos antes do julgamento, houve outra tentativa de golpe.Em todas as três convulsões cívicas desempenharam um papel importante jovens ricos da entourage de Sócrates.Tanto em 411 quanto em 404, a democracia foi derrubada não por descontentamento, mas por conspiradores.


Sócrates na Apologia de Platão nega ter durante toda a vida  participado de conspirações. Sócrates julgou necessário negar ter participado de tais conspirações por ter em comum com os conspiradores antipatia pela democracia. Tais eventos ainda estavam vividos na memória dos atenienses quando Sócrates foi a julgamento.


Outra conspiração ocorreu depois que Atenas rendeu-se no final da guerra do Peloponeso. Era tal o medo do que os vitoriosos pudessem fazer que a própria assembleia ateniense votou a favor da extinção da democracia. Assim, em 404 a.C., os Trinta subiram ao poder com a sua segurança garantida por uma guarnição espartana.


Sócrates, durante esses conflitos históricos e durante os períodos em que foram resolvidos de modo civilizado , não tomou partido. O homem mais tagarela de Atenas calou-se quando a sua voz era mais necessária. Ao que parece, Sócrates era desprovido de compaixão. Jesus chorou por Jerusalém, Sócrates jamais derramou uma lágrima por Atenas.

Em 401 a.C. , a meu ver não teria havido o julgamento se Sócrates houvesse demonstrado ter se reconciliado com a democracia. Se tal atitude tivesse ocorrido, ele teria atenuado os temores de outra safra de jovens “ socratizados” que mais uma vez desencadeassem um guerra civil na cidade.Após a queda dos Trinta, Sócrates retomou seus ensinamentos anti-democráticos e anti-políticos. O tom por ele adotado era, por trás da ironia, de escárnio.

Aparentemente Sócrates não aprendeu nada com os acontecimentos de 411, 404 e 401 a.C. Continuava vivendo em Atenas, pairando sobre as nuvens, com a cidade a seus pés com desdém.


XENOFONTE, PLATÃO E OS TRÊS TERREMOTOS.


Xenofonte e Platão eram adolescentes quando foi estabelecida a ditadura dos Quatrocentos em 411 a.C.. Quando sete anos depois foi instaurada a ditadura dos trinta , ambos na faixa dos vinte anos, não se tem notícia de terem se engajado em nenhum lado do conflito. Em 401 a.C. Xenofonte partiu de Atenas como oficial de mercenários do exército persa. Nunca mais voltou a Atenas. Passou o resto da vida em Esparta.

Platão, ao contrário de Xenofonte, estava presente no julgamento de Sócrates, mas fugiu da cidade antes da execução. Permaneceu afastado por doze anos.

As Helênicas, obra de Xenofonte, é uma continuação da história de Tucídides, que vai até 411 a.C. -  Xenofonte cobre  o período até 400 a.C. 


Em suas Memoráveis , Xenofonte mostra um Sócrates mais contrário ao regime dos Trinta que o Sócrates platônico. Nela Sócrates critica a ditadura publicamente em um sermão. Mas considerando as circunstâncias, este parece um protesto muito tímido. Sócrates foi chamado a se apresentar a dois membros dos Trinta encarregados de reformar as leis atenienses para o novo regime. Não apenas proibiram Sócrates de conversar fiado com os jovens , mas que não poderia mais continuar com aquele tipo de ensino filosófico , que aguçara a inteligência de ao menos dois membros dos Trinta - Crítias e Cármides, ambos ex-discípulos de Sócrates.  


Era a oportunidade de fazer uma defesa de seus  direitos enquanto professor e cidadão, e o que achava da ilegalidade do regime. Em vez  disso, Sócrates inicia uma sequência de questões para embaraçar os interlocutores. Ao final das quais , Cáricles disse: “ você tem o hábito de fazer perguntas cujas respostas já conhece. É disso que proibimos.

Sócrates indaga se não pode mais falar dos seus assuntos prediletos: Justiça, Piedade, coisas assim?

“ isso mesmo, diz Cáricles”.


No grande debate referente ao uso do terror entre o linha-dura Crítias e o moderado Terâmenes, nas Helênicas de Xenofonte, Crítias defende o terror com uma lógica impiedosa.  Como desarmar e privar dos direitos de cidadania um povo há dois séculos acostumado à igualdade e ao livre debate, sem impiedosas execuções em massa?


Platão, que buscava uma transformação igualmente radical, tentou imaginar de que modo poderia acostumar um povo livre à servidão. A solução que encontrou foi um complexo sistema de  doutrinação ideológica imposto pelo Estado, através do qual as   “ massas “ seriam habituadas desde a infância a se considerarem inferiores. 


Neste ponto Platão e Crítias concordam. Além de instituir a mentira oficial, “ a doutrinação “ eles estavam dispostos a usar a força para realizar o sonho de criar uma Nova Ordem e um Novo Homem, mais submisso que o antigo. Platão gostaria de criar seres humanos como se criam animais. Para melhorar o rebanho, a procriação seria rigorosamente controlada pelo Estado, e a formação de casais seria por sorteio. Sorteio que seria com cartas marcadas, com fim de  eugênia…a fim de que o rebanho seja o mais  dócil possível. ( nota minha -  fonte de inspiração para os regimes nazistas e  comunistas ).



Segundo Platão, o leitor grego da época saberia aonde ele queria chegar. O cidadão armado não apenas defendia a liberdade da cidade como também podia usar as suas armas para defender a sua própria liberdade. ( nota de rodapé- Foi graças à posse de armas que os colonos americanos puderam desafiar a coroa britânica ). O objetivo de Platão na República era manter o povo desarmado incapaz de oferecer resistência a seus senhores. Para Platão o absolutismo é a única forma legítima de governo, tendo o direito de matar ou banir súbitos “ para o seu próprio bem”.


O PRINCIPAL ACUSADOR


Dos três acusadores de Sócrates , o único que tinha prestígio em Atenas era Ânito. Os outros , Meleto e Lícon, eram figuras obscuras. Lícon participa da acusação como representante dos oradores; Meleto, dos poetas; e Ânito, dos artesãos e líderes políticos. Conclui-se que todos os principais cidadãos de Atenas estavam unidos contra Sócrates. Crítias , já morto,  era a principal peça de acusação, o melhor exemplo da má influência de Sócrates no sentido de corromper a juventude e volta-la contra a democracia. 


Segundo uma lenda, Ânito teve mau fim. Ela surge cinco séculos depois do julgamento de Sócrates, na vida dos filósofos de Diógenes Laércio. Segundo este autor , após a morte de Sócrates , “ foi tamanho o remorso dos atenienses “, que eles voltaram-se contra seus acusadores. Executam Meleto, expulsaram Lício e Lícon e erigiram uma estátua em bronze a Sócrates. Estranho que este fato não tenha sido relatado nem por Xenofonte nem por Platão..



COMO SÓCRATES FEZ O POSSÍVEL PARA HOSTILIZAR O JÚRI.


No julgamento de um crime em Atenas, o júri votava duas vezes. Votava-se pela absolvição ou pela condenação. Em caso de condenação , votava-se para decidir a pena. Na primeira, motivo de surpresa, Sócrates foi condenado por uma diferença de apenas 6% dos votos. Muitos votará pela absolvição- 220 votos e pela condenação - 280. Somente trinta votos eram suficientes para a absolvição. Sócrates ficou surpreso, queria ser condenado, segundo Xenofonte, e fez tudo para hostilizar o júri. 


Sócrates diz que : “ Se minha existência se prolongar , sei que as debilidades da velhice virão inevitavelmente…

A estratégia de Sócrates era claramente perder não apenas na primeira votação como também na segunda. Sócrates queria morrer. Indaga ele: “ Se percebesse minha decadência e começasse a me queixar , como poderia continuar a gozar a vida”? Para ser condenado, Sócrates adotou um tom jactancioso e arrogante para irritar os juízes. 


As circunstâncias eram extremamente favoráveis para que se chegasse a uma pena menos severa — o banimento ou uma multa.Porém a postura desafiadora de Sócrates levou a pena máxima por 360 votos contra 140.


Quando no último dia de vida do mestre, os discípulos inconsoláveis argumentam que a submissão dele na verdade é uma forma de suicídio e a questionam sob o ponto de vista moral. Sócrates responde afirmando que, para o filósofo, a morte é a realização final, das mais desejada, pois abria as portas do verdadeiro conhecimento. Sócrates pura e simplesmente queria morrer. 


No entanto, no Fédon, é necessário observar que há uma nódoa : a atitude fria e insensível de Sócrates em relação à esposa dedicada, Xantipa. Ela passará a vida esforçando-se para conseguir criar os filhos enquanto o marido deleitava-se com discussões filosóficas. Sócrates sempre se ufanava de não cobrar nada de seus discípulos, ao contrário dos sofistas, mas a sua mulher era quem pagava o pato. Mas quando despedem-se para sempre, Sócrates não manifesta o menor sinal de gratidão ou ternura. Sócrates não a abraçou para consola-la, nem manifestou nenhuma tristeza, nem sequer beijou o filho pequeno que ela trazia. Despediu-se dela despachando-a secamente. Sócrates tinha dois filhos pequenos e um crescido.



COMO SÓCRATES PODERIA FACILMENTE TER OBTIDO ABSOLVIÇÃO .


Se Sócrates quisesse ser absolvido, creio que dispunha de  um meio fácil de conseguir. Apesar do prestígio do principal acusador e da memória ainda dos Trinta,  o júri relutava em condená-lo. A acusação ia contra o espírito da lei e da tradição de Atenas. Eram profundas as divergências entre Sócrates e a cidade, mas não chegam a configurar um motivo para um processo criminal.


Quando Atenas processou Sócrates, a cidade se traiu. O paradoxo , a vergonha do julgamento de Sócrates é o fato de uma cidade famosa pela liberdade de expressão nela existente processar um filósofo por exercer o direito de se exprimir livremente. O julgamento de Sócrates foi um julgamento de ideias. Ele foi o primeiro mártir da liberdade de expressão e pensamento. Se tivesse se defendido utilizando esses fatores e invocando as tradições fundamentais, creio que ele seria facilmente absolvido.


As acusações a Sócrates são vagas. Não são mencionados atos concretos contra a cidade. As acusações limitam-se aos  ensinamentos e às convicções de Sócrates. Ele foi julgado por causa do que disse, não por nada que tivesse feito. Em relação à acusação de impiedade , Sócrates manifesta-se em termos tão vagos como os seus acusadores. Jamais discute a alegação de  ateísmo. Ainda que não houvesse em Atenas nenhuma lei que o proibisse. Foi o monoteísmo que instaurou a intolerância religiosa.


Todos os gregos cultuavam as divindades olímpicas de Homero.Em Atenas Palas,  Atena era adorada não só como deusa da sabedoria mas também como como padroeira das artes e ofícios, Sócrates, contudo,  refere-se com desdém aos artesãos e comerciantes. Como já vimos, o tipo de sociedade que ele admirava era Esparta, onde só eram cidadãos os guerreiro-proprietários.


O QUE SÓCRATES DEVERIA TER DITO


Sabemos com referências esparsas, que havia muitas apologias de Sócrates na Antiguidade, além das de Platão e Xenofonte. Aparentemente a apologia era um gênero literário na Antiguidade. Na Apologia de Libâneo, Sócrates diz: “ tu Ânito, numa democracia estás agindo com mais rigor do que qualquer ditador”. Na mesma passagem, diz que Atenas possuía a liberdade de expressão “ para que, libertos de todos os medos, pudéssemos exercitar nossos espíritos através do aprendizagem”.


“ Atenienses, concidadãos, Sócrates poderia ter argumentado, “ não é Sócrates que está sendo julgado, mas as ideias, e Atenas”. Ameaçam-me de morte por não gostar das minhas ideias e ensinamentos. Nesse sentido, é Atenas que está no banco dos réus, não Sócrates. Cada um dos senhores, meus juízes, é um réu. Serei franco. Não acredito em sua propalada liberdade de expressão, os senhores sim.Creio que as opiniões de homens comuns não passam de doxa — convicções sem substância, pálidas sombras da realidade, que não devem ser levadas a sério. “ Considero absurdo que se incentive a livre expressão de opiniões sem fundamento e mesmo irracionais, ou fundamentar a política da cidade numa contagem de cabeças, como quem conta repolhos. Portanto, não creio na democracia. Mas os senhores, sim. Os senhores estão sendo testados, não eu.


O que caracteriza a verdadeira liberdade de expressão não é o fato de o dito ou o ensinado conformar-se  a qualquer  norma. A liberdade de discordar é que é a liberdade de expressão. “ As ideias não são frágeis como os homens. É impossível fazê-las beber cicuta. Minhas ideias, e meu exemplo sobreviverão a mim. Mas o bom nome de Atenas ficará maculado para todo o sempre, se violarem as tradições condenando-me. A vergonha será sua, não minha”



AS QUATRO PALAVRAS


Teria dado certo uma estratégia de defesa baseada no conceito de liberdade de expressão? Os atenienses realmente a consideravam um princípio básico de governo , tal como nós? Cheguei à conclusão de que nenhum outro povo deu mais valor à liberdade de expressão do que os gregos, particularmente os atenienses. Atenas era a cidadela da democracia. Foram os gregos que inventaram a palavra demokratia - governo do povo. Com a luta pela democracia entraram para a língua palavras compostas contendo o termo isos , igual. As duas mais importantes eram: isoles, igualdade e isonomia , igualdade de todos perante a lei.


Para ver como Atenas estava avançada no respeito à liberdade de expressão, basta lembrar que  em 1.576 um jovem e destemido puritano , Peter Wentworth, foi preso por ousar falar livremente na Câmara dos Comuns. Foi só em 1.689  que o  direito de expressão foi firmemente estabelecido  — e protegido das represálias do poder real.


Não é exagero afirmar que, na Atenas do século V , o teatro gozou de mais liberdade de expressão do que em qualquer outro período da história. Sem dúvida, o teatro poderia fornecer uma defesa de Sócrates fundamentada na liberdade de expressão e todo um acervo de sentimentos profundos do povo ateniense, o que envergonharia seus juízes.


A QUESTÃO FINAL


Há no Críton uma passagem em que caberia um argumento a favor das liberdades civis. Na discussão entre Sócrates e as Leis, estas afirmam que “ na guerra, no tribunal e em toda parte , deves fazer o que o Estado determinar, ou então demonstrar-lhe, através da persuasão, o que é direito”. Sócrates poderia ter perguntado então como ele poderia convencer as Leis do “ que é direito “ sem liberdade de expressão?


Nesse debate está implícita a ideia de que há um contrato entre o Estado e o  cidadão. As Leis argumentam que, se o cidadão aceita os termos do contrato quando lhe interessa, ele deve também aceitar os deveres impostos pelo contrato mesmo que isso fira os seus interesses.


Sócrates poderia ter argumentado — e a meu ver a maioria dos juízes concordaria — que se as Leis rompiam o contrato, extinguindo a liberdade de expressão, o cidadão não lhe devia mais nenhuma obrigação. Ao perder o direito de persuadir , ele ganhava o de resistir.



Se, por um momento, considerarmos Platão como dramaturgo e Sócrates como herói trágico, perceberemos que seria uma incoerência escrever uma cena em que Sócrates invocasse a liberdade de expressão e Atenas honrasse suas tradições libertando-o. O herói de Platão viveu e morreu de acordo com seus princípios.


O martírio de Sócrates e o gênio de Platão transformam Sócrates num santo profano, o homem superior que enfrenta a turba ignara  com serenidade e bom humor. Foi esse o triunfo de Sócrates, e a obra prima de Platão. Sócrates precisou da cicuta, tal como Jesus da Cruz, para cumprir a sua missão.


EPÍLOGO 

TERIA HAVIDO UMA CAÇA ÀS BRUXAS EM ATENAS?


A condenação de Sócrates foi um caso isolado? Ou seria ele apenas a vítima mais famosa de uma onda de perseguições contra filósofos irreligiosos?


Segundo o historiador E.R. Dodds, em sua famosa obra The Greeks and the irrational, essa caça às bruxas teve início com a aprovação de leis tão terríveis que chega a ser difícil entender por que tantos filósofos ousaram ir para lá. E por obra de que milagre Sócrates conseguiu não ser preso durante trinta anos após a aprovação dessas leis. 


Mais recentemente, Arnaldo Modigliani defendeu em dois ensaios — Freedom of speech e Impiety in the classical world , uma posição semelhante .  Nenhuma investigação do julgamento de Sócrates estaria completa se não levasse em conta essas hipóteses sombrias, propostas por autores tão respeitados.


A meu ver, as fontes em que se baseiam tais propostas são todas tardias e suspeitas. Não há nenhuma prova “ da existência de uma caça às bruxas que seja anterior ao período romano. A fonte principal é Plutarco , que escreveu cinco séculos depois de Sócrates.


Dos muitos casos em que se configuraria uma caça às bruxas, o único que merece crédito é o de Aristóteles. Em 332 a.C. , quando morreu Alexandre , Atenas rebelou-se, entusiasmada, contra os detestados tiranos macedônios , e restaurou a democracia. Aristóteles, que sempre fora protegido da corte Macedônia, fugiu da cidade, com medo de ser morto. Segundo relato, ele disse que fugiu porque não queria que Atenas pecasse contra a filosofia pela segunda vez.


Isto é tudo o que a história nos diz sobre a liberdade de ensino filosófico em Atenas até 529 d.C., quando o imperador Justiniano fechou a academia platônica e as outras escolas atenienses para todo sempre.

Assim, do século VI a.C. ao século Vl d.C. , a filosofia desfrutou de liberdade em Atenas — foram 1.200 anos, um período cerca de duas vezes mais longo que a era de liberdade de pensamento que vai da Renascença até a atualidade.


CONCLUSÃO


Resenhar um texto tão rico de parte da história da Grécia, da história da filosofia e da filosofia em si é como cortar na própria carne. Dói. Pois, nada do texto é supérfluo. É fácil  separar o joio do trigo. Difícil quando não há joio, só   trigo. Como é o caso do julgamento de Sócrates. Por ser denso, claro, bem fundamentado torna a tarefa desafiante.


 Avaliar o que cortar para não perder nem o fio da meada e nem os  ensinamentos valiosos foi uma  tarefa que, se bem sucedida, deve incentivar  a leitura do texto original. Este livro, a par do prazer da leitura, é um material de estudo. Tendo em  destaque a   emocionante eloquência de Sócrates na sua autodefesa. Este é um livro para  ser lido e relido. Até para conhecer o trigo que foi descartado.


O autor, Stone, foi sublime ao separar a fantasia da realidade, com lentes  de dois milênios. Ele  nos aponta  de onde vieram muitos dos conceitos que influenciaram a organização dos Estados modernos. Por mais que se saiba, surpreende ver que a democracia e os valores humanos da  Grécia antiga estão na base da Constituição dos Estados Unidos da América. Mas não só nela.  As ideias subjacentes nas grandes correntes filosóficas e políticas do Ocidente  todas têm raízes  nos antigos filósofos gregos: liberdade de expressão, civilidade, eugenia, porte de armas, democracia, totalitarismo, justiça…Tudo tem a Grécia como fonte. 


Jorge Wilson Simeira Jacob