As curvas de um rio.
Felícia era o retrato da própria felicidade.Como Filha de Maria, frequentava regularmente os ofícios religiosos da igreja do seu bairro. Piedosa, orava pela saúde dos filhos, mas sobretudo para que a Virgem Protetora das Perdidas a protegesse de uma infidelidade do Brás, seu adorado marido. Estavam casados há uma década, eram os únicos namorados desde a infância. Felícia era o ciúme personificado. Tinha pesadelos com possíveis aventuras do marido. Fiscalizava a sua agenda, policiava os seus passos, sem nunca ter tido um único indício de desvio de conduta. Ainda que nada descobrisse, nada acalmava as suas suspeitas, mas continha-se discretamente. Até que um dia recebe a vizinha em prantos a contar-lhe ter descoberto uma amante do marido. Aquilo transtornou a cabeça da pobre Felícia: - todos os homens são infieis, vou descobrir a minha rival. Não aceito ser enganada! Prefiro a morte a suportar uma traição.
À noite, toda embonecada, antes do jantar, mesa à luz de velas, estava determinada a descobrir o pecado do marido, Felícia encheu-o de elogios e serviu-lhe um vinho para deixá-lo mais solto. Sorrateiramente, com ar angelical, comenta o caso da vizinha dando razões ao infiel: - Afinal, diz ela, é da natureza humana ceder às tentações…e essas não faltam. E, na sequência lança a isca: Brás, vc já foi tentado a ter um caso amoroso com outra? Se o vizinho, um velho que nada tem para atrair alguém,consegue uma jovem como amante, vc que é um galã deve ter muitas aos seus pés? Brás, vaidoso, confirma: sim, tenho sido tentado inúmeras vezes. Não tem sido fácil resistir. Ainda que tenha como grande sonho provar outra maçã que não a sua. Vc sabe que tirando vc, eu sou virgem! Assumo que a tentação é grande, mas estou determinado a resistir! Ademais sei que a mataria de ciúmes.
Aliviada com a sinceridade visível nas palavras do marido, no dia seguinte, foi à igreja rezar um rosário em agradecimento à Virgem Protetora das Levianas. A partir daí a sua vida tornou-se mais suave. Tinha afastado a suspeita da infidelidade. Porém, a vida é cheia surpresas. São como as das curvas de um rio. Uma destas surpresas foi o marido ter contraído o coronavírus. Foi internado. Piorou. Foi incubado. Foi desenganado. Felícia não suportava o risco de perder o pai dos seus filhos, a viuvez, o seu único e sincero amor na vida. Resolveu in extremis fazer o máximo dos sacrifícios, prometeu à Virgem que: - se ele voltasse para casa ela aceitaria pacificamente que ele arrumasse uma amante. Afinal, racionalizou, se vou perdê-lo para o vírus que perca metade para outra. Promessa feita vai da igreja ao hospital cheia de esperança. Outra surpresa no rio da sua vida. Sem mais nem menos, Brás tinha reagido aos tratamentos e teria alta em breve. Os médicos falavam ter sido uma cura milagrosa.
Dias depois, em casa, antes do jantar, Felícia, com a consciência pesada, sente-se obrigada a cumprir a promessa, que salvou a vida do Brás. Conta a ele a causa da sua “ ressureição “ e os detalhes do compromisso que estava determinada a cumprir. Outra surpresa, Brás reage com indignação: - nada disto! não sou fraco de vontade como os outros. Tenho orgulho de fazer parte de uma minoritária que resiste à tentação.Não abro mão da fidelidade conjugal. Faço questão de ser diferente. A minha alta estima não suportaria ser nivelado por baixo. E, irritado: - não aceito a proposta de ter uma amante. Tenho prazer de dizer não às mulheres também por orgulho pessoal. Felícia cai em prantos, desesperada. Não querido, não faça isto comigo. Há tantas moças bonitas que lhe dariam muito prazer. As aventuras amorosas vão alegrar a sua vida. A infidelidade é só uma convenção social. No nossos caso nem será uma traição, pois estamos de acordo e temos as bênçãos da Virgem . Os seus amigos morrerão de inveja. Vc tem tudo a ganhar, além da minha gratidão, pois, se eu não cumprir o meu voto, nunca mais poderia ir à igreja e terminarei no inferno. Serei uma desgraçada. Não! Não Brás, arrume uma amante! Pela minha felicidade, pelo amor de Deus , coma quantas maçãs vc quiser! Eu imploro, faça este sacrifício por mim. Só assim eu voltarei a ser feliz!
São Paulo, 24 de junho de 2021.
Jorge Wilson Simeira Jacob
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