Nas mil e uma noites.
O Sultão, como fazia todas às quartas-feiras, despediu-se de Sherazade e dirigiu-se à sala do Conselho para mais uma sessão pública. Sentado no seu trono, ia ouvindo os pedidos de benemerência ou de clemência dos que esperavam em fila a vez de ser atendidos. Ora era uma jovem que pedia algumas moedas de ouro para comemorar as bodas, ora era uma mãe que pedia a liberdade do filho encarcerado por um pequeno furto... A todos o Sultão Shariar ouvia com atenção e empatia. A poucos recusava o pedido. Naquele dia, apresenta-se o jovem Halim para reclamar da desigualdade existente entre ele, os seus, e a alguns privilegiados do reino. Dizia ele:
- Se o meu esforço é igual por que não recebo as mesmas honrarias e pagamentos? Há quem nada faz a não ser pôr os outros a trabalhar, ganhando milhares de vezes mais do que eu. Acho que todos deveriam receber o mesmo pelo esforço que fazem. É injusto alguém ter mais do que eu.
O Sultão, sentiu a inveja, mas mesmo assim sensibilizou-se com o discurso do súdito. Sem ter uma resposta na ponta da língua, pediu que o postulante sentasse ao seu lado aguardando a sua decisão. A fila foi andando até que surge Abdullah, um imponente cidadão, todo coberto de correntes de ouro e acompanhado de diversos escravos, que reclama da desigualdade na distribuição da felicidade existente no reino. Dizia ele:
- Os meus escravos dormem tranquilos, não tem o que ser roubado; comem frugalmente, não são tentados pela mesa farta; estão sempre disponíveis para o amor, não tem preocupações com o mundo ao seu redor, não tem um nome à zelar ... Eu sou escravo da minha condição sócio-econômica e política. Não tenho liberdade para ser eu mesmo. Sou vigiado por tudo e por todos. Enquanto um trabalhador é servo durante a sua jornada, eu sou ilimitadamente escravo das minhas obrigações. Ilustre Sultão, Rei dos Reis, oh todo poderoso, aceite os meus bens e permita-me a igualdade na felicidade dos outros súditos do reino.
Shariar ficou perplexo. Um pedia o que o outro não queria ter! Passados uns minutos , sentenciou: doravante o Halim passará a ser o Abdullah e vice versa, com todos os ônus e bônus, por um ano. Naquele mês e dia, eu os aguardo para, terminada a fase desta experiência, torná-la ou não definitiva. Os dois deram as mãos, trocaram as vestimentas e foram para a casa um do outro.
Um ano depois, o Sultão já havia esquecido do caso quando vê em sua frente Abdullah e Halim. O sultão não pôde conter a curiosidade e mandou que os dois furassem a fila para sacramentar em definitivo a troca das posições . Qual não foi a sua surpresa quando eles mostraram-se insatisfeitos com a atual situação. Shariar pediu explicações:
- Mas como?! Não era o que queriam? ! Abdullah tomou a dianteira:
- Sim, é verdade! Livrei-me da carga de administrar um grande patrimônio. Ganhei, como queria, paz de espírito ao ficar livre dos bajuladores, da falsidade, das obrigações sociais e dos interesseiros. Tive a liberdade com que sonhei, mas descobri que ela tem um preço insuportável. Não tenho o heroísmo dos homens que não vendem a honra e a dignidade em troca da riqueza, nem dos que aceitam uma vida modesta para ser dono da própria vontade. Descobri que sou fraco para viver sem as muletas que dão a riqueza e as posições. Prefiro ser escravo do poder do que ser eu mesmo. Sem conseguir respirar, o sultão olha para Halim, que diz:
- Eu também quero voltar a ser o que era. Eu era um homem simples, os amigos eram meus e não dos meus bens, não perdia tempo com as falsidades da vida social, engordei como um porco, sobretudo tive uma grande revelação - a desigualdade deveria ser medida não pelas posses, mas pelo que cada um consome*. A riqueza acima dos limites do que um homem pode usufruir é um peso, um castigo, cujo prêmio são as ilusões de glória. É como um harém de centenas de mulheres a dar despesa e contrariedade e só uma, a favorita, a dar alegria e prazer. Ter mais do que o necessário não aumenta a felicidade, mas as obrigações. Na verdade, descobri, que todo o supérfluo não nos pertence, é da sociedade, a nós somente cabe a carga da defesa de um patrimônio, que é de todos, com a perda do direito de ser você mesmo.
- está reflexão foi motivada pelas críticas à notícia de ter Bill Gates adquirido uma grande área agrícola, tornando-se o maior proprietário de terras dos Estados Unidos, aumentando a desigualdade entre ricos e pobres. O que é verdade como também o é de que não fará ninguém mais pobre. O acréscimo da produção não será consumida por ele. As terras ninguém poderá “comer”, mas o aumento da produção sim. Ninguém veste duas camisas. Combater a pobreza é um desejo dos liberais, a desigualdade dos socialistas.
- São Paulo, 18 de janeiro de 2021.
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