terça-feira, 19 de janeiro de 2021

 Nas mil e uma noites.




O Sultão, como fazia todas às quartas-feiras, despediu-se de Sherazade e dirigiu-se à sala do Conselho para mais uma sessão  pública. Sentado no seu trono, ia ouvindo os pedidos de benemerência ou de clemência dos  que esperavam em fila a vez de ser atendidos. Ora era uma jovem que pedia algumas moedas de ouro para comemorar as bodas, ora era uma mãe que pedia a liberdade do filho encarcerado por um pequeno furto... A todos o Sultão Shariar  ouvia com atenção e empatia. A poucos recusava o pedido. Naquele dia, apresenta-se o jovem Halim  para reclamar da desigualdade existente entre ele, os seus, e a alguns privilegiados do reino. Dizia ele: 

  • Se o meu esforço é igual por que não recebo as mesmas honrarias e pagamentos?  Há quem nada faz a não ser pôr os outros a trabalhar, ganhando milhares de vezes mais do que eu. Acho que todos deveriam receber o mesmo pelo esforço que fazem. É injusto  alguém ter mais do que eu. 

 

O Sultão, sentiu a inveja, mas mesmo assim  sensibilizou-se com o discurso do  súdito. Sem  ter uma resposta na ponta da língua, pediu que o postulante sentasse ao seu lado aguardando a sua decisão. A fila foi andando até que surge Abdullah, um imponente cidadão, todo coberto de correntes de ouro e acompanhado de diversos escravos, que reclama da desigualdade na distribuição da felicidade existente no reino. Dizia ele: 

  • Os meus escravos dormem tranquilos, não tem o que ser roubado; comem frugalmente, não são tentados pela mesa farta; estão sempre disponíveis para o amor, não tem preocupações com o mundo ao seu redor, não tem um nome à zelar ... Eu sou escravo da minha condição sócio-econômica e política. Não tenho liberdade para ser eu mesmo. Sou vigiado por tudo e por todos. Enquanto um trabalhador é servo durante a sua jornada, eu sou ilimitadamente escravo das minhas obrigações. Ilustre Sultão,  Rei dos Reis, oh todo poderoso, aceite os meus bens e permita-me a igualdade na felicidade dos  outros súditos do reino. 


Shariar ficou perplexo. Um pedia o que o outro não queria ter! Passados uns minutos , sentenciou: doravante o Halim passará a ser o Abdullah e vice versa, com todos os ônus e bônus,  por um ano. Naquele mês e dia, eu os aguardo para, terminada a fase desta experiência, torná-la ou não definitiva. Os dois deram as mãos, trocaram as vestimentas e foram para a casa  um do outro. 


Um ano depois, o Sultão já havia esquecido do caso quando vê em sua frente Abdullah e Halim. O sultão não pôde  conter a curiosidade e mandou que os dois furassem a fila para sacramentar em definitivo a troca das posições . Qual não foi a sua surpresa quando eles  mostraram-se insatisfeitos com a atual situação. Shariar pediu explicações:

  • Mas como?! Não era o que queriam? ! Abdullah tomou a dianteira:
  • Sim, é verdade! Livrei-me da carga de administrar um grande patrimônio. Ganhei, como queria,  paz de espírito ao ficar  livre dos bajuladores, da falsidade, das obrigações sociais  e dos interesseiros. Tive a liberdade com que sonhei, mas descobri que ela  tem um preço insuportável. Não tenho o heroísmo dos homens que não vendem a honra e a dignidade em troca da riqueza, nem  dos que  aceitam uma vida modesta  para ser dono da própria vontade. Descobri que sou fraco para viver sem as muletas que dão a riqueza e as posições. Prefiro ser escravo do poder do que ser eu mesmo. Sem conseguir respirar, o sultão olha para Halim, que diz: 



  • Eu também quero voltar a ser o  que era. Eu era um homem simples, os  amigos eram meus e não dos meus bens, não perdia tempo com as falsidades da vida social, engordei como um porco, sobretudo  tive uma grande revelação - a desigualdade deveria ser medida não pelas posses, mas pelo que cada um consome*. A riqueza acima dos limites do que um homem pode usufruir é um peso, um castigo, cujo prêmio são  as ilusões de glória. É como um harém de centenas de mulheres a dar despesa e contrariedade e só uma, a favorita, a dar alegria e prazer. Ter mais do que o necessário não aumenta a felicidade, mas as obrigações. Na verdade, descobri, que  todo o supérfluo não nos  pertence, é da sociedade, a nós somente cabe  a carga da defesa de um  patrimônio, que é de todos, com a perda do direito de ser você mesmo.


  • está reflexão foi motivada pelas críticas à notícia de ter Bill Gates  adquirido uma grande área agrícola, tornando-se o maior proprietário de terras dos Estados Unidos, aumentando a desigualdade entre ricos e pobres. O que é verdade como também o é de que  não fará ninguém mais pobre. O acréscimo da produção não será consumida por ele.  As terras ninguém poderá “comer”, mas o aumento da produção sim.  Ninguém  veste duas camisas. Combater a pobreza é um desejo dos liberais, a desigualdade dos socialistas.


  • São Paulo, 18 de janeiro de 2021.

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