quarta-feira, 18 de setembro de 2019

 Sou  Dono Da Minha Vontade.




 A Sagrada Escritura é meu livro de cabeceira. Gosto de chamar o sono lendo alguma parábola.  A última  foi sobre a Rebelião dos Anjos, que me lembrou o romance com o mesmo título de Anatole France. A leitura  fez-me pensar na influência do  sobrenatural  em nossas vidas. Vida que enfrenta tantos  desafios que a sobrevivência da espécie necessita de uma ajuda milagrosa. Milagre só  possível por  existirem, como na parábola,  anjos bons,  protetores, a nos livrar dos perigos e a  nos defender da ação nefasta dos anjos maus.

Segundo a crença geral, na rebelião, os  anjos bons se alinharam  ao Senhor para encaminhar   a criatura humana na  obediência aos ditames divinos, a servir ao Senhor.   Enquanto  os  anjos maus, em campos opostos, decidiram dedicar-se a destruir a  criação divina pela inveja de não terem como os homens o livre arbítrio ,  nem  feitos  à imagem e  semelhança do criador. Criaturas, que diferentemente dos anjos,  são dotadas de vontade própria  e liberdade para   decidir o que é  pecado ou virtude... e poder escolher uma ou outra.

Há interpretações, ao contrário, que atribuem aos anjos maus a condição  de libertadores   da espécie da  ditadura divina. Estimulando- a  a usar do direito da livre escolha, pois,  na condição de  libertadores,  assumiram   como   missão   servir ao seu tutelado - a criatura humana. Segundo eles a felicidade humana  era  o seu objetivo. Outra versão existente tenta desqualificar a rebelião dos anjos como  uma tentativa de Lúcifer de subverter a ordem  e assumir o papel do Criador.

Independentemente das variadas versões dessa parábola, há entre muitos a descrença na existência desses anjos. Alguns acreditam  que é pura fantasia, anjos não existem, sendo  como os fantasmas, “nos quais não acreditamos , mas que existem, existem! “ - A verdade é  que não  podemos  vê-los, mas  os  sentimos. Eles estão presentes no nosso superego - núcleo da nossa censura. Essa consciência que refreia os nossos instintos, manipula a nossa vontade e afasta as tentações. É o espaço onde as forças do bem e do mal  disputam a nossa decisão. Ali as partes operam os  seus instrumentos de persuasão:   o castigo e o prêmio. Uma luta onde  o  anjo bom  nos aconselha a virtude da abstinência, da prudência e do respeito aos ditames divinos. Virtude não reconhecidas  como tal pelo anjo mau.  Este não concorda e diz que não existe virtude naquilo que causa a nossa infelicidade. A vida é curta e não deve ser sacrificada por crenças questionáveis . Faça a sua vida, aproveite! E enfatiza o descrédito na proposta  do anjo bom, afirmando que virtude e  pecado são puras convenções,  um mero instrumento de dominação. 

Estes pensamentos tiraram o meu  sono. Fiquei com minhoca na cabeça . À dúvida instalou- se e a ela seguiu-se  o questionamento: será  que por cordeirismo, por falta de espírito crítico, estou deixando-me enganar? Será que  estou cometendo o erro de aceitar  como sendo mau justamente o anjo salvador, o que quer o nosso bem? Não foi o dito anjo bom  que por milênios colocou-se contra a  liberdade sexual das mulheres, contra a opinião favorável  do  anjo mau? Por ação dele às  mulheres foi negada a igualdade de direitos  ao dos homens. Um absurdo, uma injustiça, pois o que antes era um pecado abominável, imperdoável, merecedor do inferno, hoje é uma realidade  mais do que aceita. O mesmo acontecia com os  jovens , aos quais   proibia-se  a masturbação,   com mil razões,   e que hoje é aconselhada como saudável, física  e psicologicamente,  para todos em todas as idades.


Onde andava o anjo bom,  que,  condenando a satisfação dos desejos naturais, impediu o prazer exigido pelo nosso DNA, colocando um obstáculo à nossa felicidade?  Quando em  direção contrária, a nosso favor,  estava o anjo mau, sugerindo exercer ao limite todas  as nossas possibilidades. E,  este, dando colorido às tentações , nos mostrava que o que contava  era ser feliz! Se o Criador ama a Sua criação deveria fazer da felicidade dele a Sua, não o contrário. O Criador deve cuidar da sua criatura e não a criatura  do seu Criador. 

Só consegui conciliar o sono quando ocorreu-me que Lúcifer sim era o anjo bom e que o inferno era o paraíso.  Como seria possível acreditar que  um Deus bondoso pudesse punir tão severamente o que era a Sua imagem e semelhança?!  Esta conclusão   deu-me tranquilidade. Agora sim, conclui,  vou poder exercer o direito de buscar com empenho  a minha felicidade.  Agora sim faz sentido o livre arbítrio! Agora vou  poder exercer a minha liberdade de escolha sem as ameaças de prêmio  e  castigo. Sinto , como nunca, ser agora dono da minha vontade! Agora posso escolher a minha maneira de ser feliz! Felicidade cuja perseguição só deve parar quando afetar a felicidade de outro . Exatamente igual à liberdade individual!


Jorge Simeira Jacob

Reflexões 


Setembro, 2019.

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