Sou Dono Da Minha Vontade.
A Sagrada Escritura é meu livro de cabeceira. Gosto de chamar o sono lendo alguma parábola. A última foi sobre a Rebelião dos Anjos, que me lembrou o romance com o mesmo título de Anatole France. A leitura fez-me pensar na influência do sobrenatural em nossas vidas. Vida que enfrenta tantos desafios que a sobrevivência da espécie necessita de uma ajuda milagrosa. Milagre só possível por existirem, como na parábola, anjos bons, protetores, a nos livrar dos perigos e a nos defender da ação nefasta dos anjos maus.
Segundo a crença geral, na rebelião, os anjos bons se alinharam ao Senhor para encaminhar a criatura humana na obediência aos ditames divinos, a servir ao Senhor. Enquanto os anjos maus, em campos opostos, decidiram dedicar-se a destruir a criação divina pela inveja de não terem como os homens o livre arbítrio , nem feitos à imagem e semelhança do criador. Criaturas, que diferentemente dos anjos, são dotadas de vontade própria e liberdade para decidir o que é pecado ou virtude... e poder escolher uma ou outra.
Há interpretações, ao contrário, que atribuem aos anjos maus a condição de libertadores da espécie da ditadura divina. Estimulando- a a usar do direito da livre escolha, pois, na condição de libertadores, assumiram como missão servir ao seu tutelado - a criatura humana. Segundo eles a felicidade humana era o seu objetivo. Outra versão existente tenta desqualificar a rebelião dos anjos como uma tentativa de Lúcifer de subverter a ordem e assumir o papel do Criador.
Independentemente das variadas versões dessa parábola, há entre muitos a descrença na existência desses anjos. Alguns acreditam que é pura fantasia, anjos não existem, sendo como os fantasmas, “nos quais não acreditamos , mas que existem, existem! “ - A verdade é que não podemos vê-los, mas os sentimos. Eles estão presentes no nosso superego - núcleo da nossa censura. Essa consciência que refreia os nossos instintos, manipula a nossa vontade e afasta as tentações. É o espaço onde as forças do bem e do mal disputam a nossa decisão. Ali as partes operam os seus instrumentos de persuasão: o castigo e o prêmio. Uma luta onde o anjo bom nos aconselha a virtude da abstinência, da prudência e do respeito aos ditames divinos. Virtude não reconhecidas como tal pelo anjo mau. Este não concorda e diz que não existe virtude naquilo que causa a nossa infelicidade. A vida é curta e não deve ser sacrificada por crenças questionáveis . Faça a sua vida, aproveite! E enfatiza o descrédito na proposta do anjo bom, afirmando que virtude e pecado são puras convenções, um mero instrumento de dominação.
Estes pensamentos tiraram o meu sono. Fiquei com minhoca na cabeça . À dúvida instalou- se e a ela seguiu-se o questionamento: será que por cordeirismo, por falta de espírito crítico, estou deixando-me enganar? Será que estou cometendo o erro de aceitar como sendo mau justamente o anjo salvador, o que quer o nosso bem? Não foi o dito anjo bom que por milênios colocou-se contra a liberdade sexual das mulheres, contra a opinião favorável do anjo mau? Por ação dele às mulheres foi negada a igualdade de direitos ao dos homens. Um absurdo, uma injustiça, pois o que antes era um pecado abominável, imperdoável, merecedor do inferno, hoje é uma realidade mais do que aceita. O mesmo acontecia com os jovens , aos quais proibia-se a masturbação, com mil razões, e que hoje é aconselhada como saudável, física e psicologicamente, para todos em todas as idades.
Onde andava o anjo bom, que, condenando a satisfação dos desejos naturais, impediu o prazer exigido pelo nosso DNA, colocando um obstáculo à nossa felicidade? Quando em direção contrária, a nosso favor, estava o anjo mau, sugerindo exercer ao limite todas as nossas possibilidades. E, este, dando colorido às tentações , nos mostrava que o que contava era ser feliz! Se o Criador ama a Sua criação deveria fazer da felicidade dele a Sua, não o contrário. O Criador deve cuidar da sua criatura e não a criatura do seu Criador.
Só consegui conciliar o sono quando ocorreu-me que Lúcifer sim era o anjo bom e que o inferno era o paraíso. Como seria possível acreditar que um Deus bondoso pudesse punir tão severamente o que era a Sua imagem e semelhança?! Esta conclusão deu-me tranquilidade. Agora sim, conclui, vou poder exercer o direito de buscar com empenho a minha felicidade. Agora sim faz sentido o livre arbítrio! Agora vou poder exercer a minha liberdade de escolha sem as ameaças de prêmio e castigo. Sinto , como nunca, ser agora dono da minha vontade! Agora posso escolher a minha maneira de ser feliz! Felicidade cuja perseguição só deve parar quando afetar a felicidade de outro . Exatamente igual à liberdade individual!
Jorge Simeira Jacob
Reflexões
Setembro, 2019.
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