domingo, 28 de abril de 2024

 






Passagens.


A vida é uma sucessão de eventos, alguns  tão marcantes, que nos emocionam. Quem não se impressionou com o primeiro bigode, a primeira menstruação? Temos frio na espinha ao tirar a carteira de motorista, ao debutar aos quinze anos, à  chegado dos primeiros cabelos brancos. Estes eventos são passagens de uma fase a outra. Aos trinta anos sentimos o distanciamento da juventude, aos 50 começamos a encarar o envelhecimento. Algumas das passagens  nos emocionam positivamente outras não.


Privilegiado por uma longa vida vivenciei a maioria das  passagens. E todas deixaram a sua marca. Agora em que atravessei a barreira dos noventa anos, dei-me com o sentimento de ter mais anos no passado e muitos poucos no futuro. Poucas coisas que plantar posso esperar colher. O tempo ficou meu inimigo. A impotência física e mental marca a sua presença. O meu fôlego é curto, as pernas são fracas, a memória falha às vezes …. e poucos são os meus desejos. 


A vida é  uma grande ilusão e sem ela o que nos resta é uma tendência muito forte à acomodação. Sem ilusões de amor e sonhos de glória a alma perde vida. Se aos 21 anos olhamos o futuro carregados de esperança, aos noventa o que mais temos presente são os fatos passados.  


Nessa passagem , ruminamos os erros cometidos, as oportunidades perdidas, vemo-nos mais voltamos ao passado,  as amizades negligenciadas, os familiares esquecidos,  os amores não correspondidos. A solidão torna-se uma companhia constante. Quase todos os amigos se foram. Os noventa anos é um marco de passagem muito forte. Há a consciência de se estar iniciando o começo do fim.Somos o último do batalhão.


Em uma carinhosa comemoração — comemorando não sei bem o quê — aos ver as velinhas acessas, onde havia mais velinhas do que bolo, ocorreu-me simbolicamente que apagá-las correspondia  a apagar o  passado e dar início a uma nova vida. Seria pretender a ressureição. Foi  um marco na minha vida, uma das minhas últimas passagens.




Entretanto, no meu íntimo, prevalece a determinação de não apagar o meu passado. Relembro com humildade  todos os meus acertos e os meus erros. São peças do meu quebra-cabeça. Ao contrário, senti ser aquele momento para  reforçar a lembrança do que melhor aconteceu na minha vida, que é esta  família ampliada — os parentes de sangue e de afinidade, que são os meus amigos.


Como órfão de pai e mãe e separado dos meus irmãos , Caio e Ana, descobri logo cedo a real importância de ter uma família. Sentia a falta dela para ser feliz. Foi assim que tive a felicidade de encontrar os amores da minha vida - a Aneliz e os meus filhos e netos. Preenchi com esta dadiva o vazio da minha orfandade.


Aprendi mais — a ver em  cada amigo, que correspondia à minha dedicação,  o sentimento de fazerem parte da minha  família. Por isto hoje como sempre eu os valorizo. Eles     são parte da minha felicidade.


Quando, daqui há 10 anos, estiver comemorando  o meu centenário, pretendo declarar que o legado da minha vida não foram os poucos bens materiais que acumulei, não foi a vida que vivi, mas uma verdadeira relação familiar — aquela que vê  tudo com   amor, onde os acertos são exaltados e os erros  perdoados.  


São Paulo, 16 de abril de 2024.

Jorge Wilson Simeira Jacob




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