segunda-feira, 22 de novembro de 2021

 A semi-virgindade.


Um dos mais marcantes traços do caracter brasileiro é a tendência à contemporização. Não é incomum  ter  como resposta a uma pergunta o  clássico  mais ou menos. A assertividade anglo-saxônica , quando aqui praticada, não é bem vista. Não gostamos de ouvir um  não e menos ainda, dizer:  não sei. Contemporizamos tudo, ou postergando uma resposta ou com escapismos: vou pensar, quem sabe, depois a gente se fala… e por aí vai. Há, porém,  situações que são absolutas, não permitem o meio termo, a protelação. A virgindade é uma delas. Não há o mais ou menos. Ou é ou não é.  É inegável que essa nossa maleabilidade torna o convívio social mais harmonioso, suave, mas, não indo ao cerne do assunto, não se vai  à solução final. Evitamos bater de frente. A  verdade, porém, com essa nossa flexibilidade diante da  ordem estabelecida, esse nosso  jeitinho encontra espaço para não se levar a lei à sério. Por isto, as nossas leis são como as vacinas - umas pegam outras, não.


Com essas e outras, o resultado é haver uma confusão  generalizada na consciência coletiva com respeito à ordem estabelecida. Começando pela organização do Estado, a sociedade aceita com naturalidade o desrespeito de um dos poderes com relação aos outros. Se fosse desfile de escolas de samba, seríamos desclassificados por ter deixado o samba enredo atravessar.  Haja visto o atual comportamento dos nossos  poderes.  O judiciário atravessa o samba legislando, o legislativo faz-se de morto, o executivo ameaça não obedecer uma lei que o desagrade… e o conúbio entre os poderes constituídos é imoral.  Em vez de cumprir as leis, que é a sua função,  o judiciário, faz uma pretensa justiça, a título de corrigir desigualdades sociais ou atender às crenças pessoais. E o povo ainda reclama de não haver justiça, quando o de que carecemos é do cumprimento das leis. Se uma lei  não é adequada,  não  cabe ao judiciário desrespeitá-la, mas ao legislativo mudá-la. 


Nessa confusão organizacional, a tal ponto está chegando a interferência/desvirtuamento  do judiciário nos assuntos de governo, sob o olhar complacente do legislativo, que vozes esclarecidas como a do Gal. Paulo Chagas, um legítimo democrata-liberal, alertam a Nação para o risco de uma ditadura deste poder. Por falta de sorte, a sociedade não faz coro a este pedido de respeito às leis e aceitam o samba atravessado.  Mais ainda, uma  massa de bem intencionados aceita que,  em vez do rigor da lei, se faça justiça - como se esta fosse a função do judiciário. Este entendimento acomodatício  faz lembrar a famosa advertência de Rui Barbosa:  a pior das ditaduras é a do judiciário, pois deste não há a quem recorrer. 


Esse samba atravessado está nos levando à  semi-virgindade. Estamos  inventando a democracia relativa ou a semi-ditadura, como sistema no nosso governo. Fugimos da  democracia clássica, que está assentada na  divisão do governo  entre três poderes - executivo, legislativo e judiciário; do  check and balance que  foi a solução de Montesquieu para proteger as nações do perigo da concentração do poder.  Ele certamente leu Hobbes e apreendeu que o  Leviatã cresce na medida do seu poder.  O poder absoluto, com os faraós, imperadores, reis, que precedeu a democracia, deixou um enredo pouco edificante. Lição que os democratas não devem esquecer.


Rui Barbosa, entretanto, estava equivocado. Não levou em conta o papel das FFAA de defesa da Constituição. Cabe a elas, além de cuidar da nossa soberania, a ordem constitucional. Elas não podem permitir, usando a força, se for o caso, uma ditadura, seja de qual dos poderes for.  O desequilíbrio vigente entre os três poderes criou  um novo modelo de organização do Estado, a democracia relativa, semi-ditadura,  para sermos vistos pelo mundo como os inventores da semi-virgindade.


São Paulo, 221 de novembro de 2021.

Jorge Wilson Simeira Jacob 

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