A semi-virgindade.
Um dos mais marcantes traços do caracter brasileiro é a tendência à contemporização. Não é incomum ter como resposta a uma pergunta o clássico mais ou menos. A assertividade anglo-saxônica , quando aqui praticada, não é bem vista. Não gostamos de ouvir um não e menos ainda, dizer: não sei. Contemporizamos tudo, ou postergando uma resposta ou com escapismos: vou pensar, quem sabe, depois a gente se fala… e por aí vai. Há, porém, situações que são absolutas, não permitem o meio termo, a protelação. A virgindade é uma delas. Não há o mais ou menos. Ou é ou não é. É inegável que essa nossa maleabilidade torna o convívio social mais harmonioso, suave, mas, não indo ao cerne do assunto, não se vai à solução final. Evitamos bater de frente. A verdade, porém, com essa nossa flexibilidade diante da ordem estabelecida, esse nosso jeitinho encontra espaço para não se levar a lei à sério. Por isto, as nossas leis são como as vacinas - umas pegam outras, não.
Com essas e outras, o resultado é haver uma confusão generalizada na consciência coletiva com respeito à ordem estabelecida. Começando pela organização do Estado, a sociedade aceita com naturalidade o desrespeito de um dos poderes com relação aos outros. Se fosse desfile de escolas de samba, seríamos desclassificados por ter deixado o samba enredo atravessar. Haja visto o atual comportamento dos nossos poderes. O judiciário atravessa o samba legislando, o legislativo faz-se de morto, o executivo ameaça não obedecer uma lei que o desagrade… e o conúbio entre os poderes constituídos é imoral. Em vez de cumprir as leis, que é a sua função, o judiciário, faz uma pretensa justiça, a título de corrigir desigualdades sociais ou atender às crenças pessoais. E o povo ainda reclama de não haver justiça, quando o de que carecemos é do cumprimento das leis. Se uma lei não é adequada, não cabe ao judiciário desrespeitá-la, mas ao legislativo mudá-la.
Nessa confusão organizacional, a tal ponto está chegando a interferência/desvirtuamento do judiciário nos assuntos de governo, sob o olhar complacente do legislativo, que vozes esclarecidas como a do Gal. Paulo Chagas, um legítimo democrata-liberal, alertam a Nação para o risco de uma ditadura deste poder. Por falta de sorte, a sociedade não faz coro a este pedido de respeito às leis e aceitam o samba atravessado. Mais ainda, uma massa de bem intencionados aceita que, em vez do rigor da lei, se faça justiça - como se esta fosse a função do judiciário. Este entendimento acomodatício faz lembrar a famosa advertência de Rui Barbosa: a pior das ditaduras é a do judiciário, pois deste não há a quem recorrer.
Esse samba atravessado está nos levando à semi-virgindade. Estamos inventando a democracia relativa ou a semi-ditadura, como sistema no nosso governo. Fugimos da democracia clássica, que está assentada na divisão do governo entre três poderes - executivo, legislativo e judiciário; do check and balance que foi a solução de Montesquieu para proteger as nações do perigo da concentração do poder. Ele certamente leu Hobbes e apreendeu que o Leviatã cresce na medida do seu poder. O poder absoluto, com os faraós, imperadores, reis, que precedeu a democracia, deixou um enredo pouco edificante. Lição que os democratas não devem esquecer.
Rui Barbosa, entretanto, estava equivocado. Não levou em conta o papel das FFAA de defesa da Constituição. Cabe a elas, além de cuidar da nossa soberania, a ordem constitucional. Elas não podem permitir, usando a força, se for o caso, uma ditadura, seja de qual dos poderes for. O desequilíbrio vigente entre os três poderes criou um novo modelo de organização do Estado, a democracia relativa, semi-ditadura, para sermos vistos pelo mundo como os inventores da semi-virgindade.
São Paulo, 221 de novembro de 2021.
Jorge Wilson Simeira Jacob
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